segunda-feira, 25 de março de 2013

A pequena Alexandrina na Póvoa de Varzim


O meu tema da vez passada foi a pequena Alexandrina em Gresufes; hoje é a mesma pequena Alexandrina, mas na Póvoa de Varzim, nos anos de 1911-1912. Contudo a sua passagem em criança pela Póvoa vai-me servir para duas conversas.
Hoje evitarei falar da República; deixarei isso para a próxima vez.


A Alexandrina ditou para a sua Autobiografia:

Em Janeiro de 1911, fui com minha irmã Deolinda para a Póvoa do Varzim, para frequentarmos a escola.
Não quero pensar quanto sofri com a separação da minha família. Chorei muito e durante muito tempo.
Distraíam-me, acariciavam-me, faziam-me todas as vontades e, depois de algum tempo, resignei-me.

Ela foi com a irmã, mas a irmã já frequentava a escola desde há um ou dois anos.
De acordo com o P.e Humberto Pasquale, “as duas irmãs foram colocadas em casa do carpinteiro Pedro Teixeira Novo, na rua da Junqueira”. A mulher do carpinteiro tinha o nome popular de Maria Mataca e possuía uma lojinha de comes e bebes próxima da Senhora das Dores.
Que relação haveria entre Maria Mataca e D. Ana? A mãe da Alexandrina fornecer-lhe-ia produtos agrícolas?
De novo o P.e Humberto: “Frequentaram a escola “Mónica Cardia” e foi sua professora a Sr.a D. Emília Rosa de Freitas Álvares, que habitava na rua do Almirante Reis”.
Mónica Cardia foi uma mulher abastada e piedosa do século XVII, que deixou um grande legado para a realização anual da Procissão do Senhor dos Passos.
A professora aparece numa fotografia escolar de 1905.

Em termos de casario, a Rua da Junqueira não era muito diferente do que é hoje, como o documentam fotografias antigas. Mas ainda haveria lá uma ou outra casa de gente muito humilde, como a de Pedro Teixeira Novo.
A Alexandrina já tinha estado na Rua da Junqueira… antes de nascer: foi lá que a Ana da Costa anunciou ao António Xavier que estava grávida e que ficou ciente que ele a trocava por outra.

O ensino primário em Balasar

D. Ana da Costa foi muito arrojada ao enviar as filhas para a escola na Póvoa: ela não era para menos.
Como é que uma mãe solteira tomou uma decisão destas, que as casadas e os casados não tomavam? Foi uma opção inspirada. Dizia ela que podia ser útil às filhas… E foi muito!
Em Balasar já havia escola para meninos desde há quarenta anos; o ensino primário para meninas só começou em tempos da Ditadura Nacional, em 1931.
O ensino primário para meninas na Póvoa começou também tarde. Num documento de 1848 esclarece-se que para meninas não havia lá escola, que elas aprendiam a ler com as “mestras de fazer meia e costura”…

O que a Alexandrina aprendeu na Póvoa

A Póvoa representou muito para a Alexandrina. Foi aí que ela aprendeu uns rudimentos de leitura e de escrita; que pôde conhecer um pouco da vida urbana – ter a experiência doutras formas de vida, comercial ou piscatória e de lazer, que não a da sua terra rural – e conhecer também o mar, que tem larga presença nos seus escritos; que passou a maior parte do tempo que não passou na sua aldeia.
Foi aí que ela comungou pela primeira vez, que pôde apreciar uma liturgia certamente mais rica, grandes festas religiosas, que frequentou a Capela da Senhora das Dores, etc.
Também aprendeu aí o que era uma religião perseguida, mas isso vê-lo-emos na próxima vez.
Morar na Rua da Junqueira era estratégico, ideal para conhecer a vida urbana. A escola ficava frente à actual estação do metro, que então era a do comboio.
Ela aprendeu muito mais do que a escola lhe ensinou.

Traquinices

Voltemos a ouvir a Alexandrina:

Continuei a ser muito traquinas: agarrava-me aos americanos, deixava-me ir um pouco e, depois, atirava-me ao chão e caía; atravessava a rua, quando eles iam a passar, sendo preciso o condutor deles acusar-me à patroa.

A linha do americano vinha do Passeio Alegre (junto ao mar e ao Café Chinês), pela Junqueira e Praça do Almada, e dirigia-se para Vila do Conde. Passava portanto frente à escola.
O americano era uma carruagem que se deslocava sobre carris, puxada por muares. No final d’Os Maias (1888), de Eça, fala-se também do americano, em Lisboa.
Outra citação:

Muitas vezes fugia de casa e ia apanhar sargaço para a praia, metendo-me ao mar, como fazem as pescadeiras; trazia-o para casa e dava-o à patroa, que o vendia depois aos lavradores. Com isto afligia a patroa, pois fazia isto às escondidas, embora rapidamente.

Temos aqui a mesma menina activa, irrequieta, ao parece pouco dada ao estudo.

Como era então a vila da Póvoa?

A Póvoa era uma vila pequena, que começava ali nos arredores da Matriz, descia pela Praça do Almada até ao mar e se estendia ainda um pouco para sul e para norte. Já havia a avenida Mouzinho de Albuquerque, mas, para norte dela, só devia haver casas junto ao mar. Tribunal e Liceu ainda tinham que esperar quase 50 anos, a Basílica tinha só a capela-mor e as obras estavam paradas, a própria Capela do Desterro ficava num descampado, como a Basílica. Ainda me recordo duma casa de lavoura com o seu espigueiro frente ao Liceu e de campos frente ao Tribunal.
Eclesiasticamente a Póvoa era uma só paróquia.


A primeira biografia que se publicou sobre a Alexandrina apresenta-a como “uma vítima da Eucaristia”. De facto a Eucaristia tem um lugar único na sua vida; daí que os seus biógrafos dêem merecida atenção a esta informação:

Foi na Póvoa de Varzim que eu fiz a minha Primeira Comunhão, com sete anos de idade. Foi o Sr. Padre Álvaro Matos quem me perguntou a doutrina, confessou e me deu, pela primeira vez, a Sagrada Comunhão. Como prémio, recebi um lindo terço e uma estampazinha.

Como será que ela se recorda dos pormenores relativos ao Sr. Padre Álvaro Matos, que nós não recordamos do tempo da nossa Primeira Comunhão? Por uma razão simples, ele tinha raízes balasarenses e teve haveres na freguesia.

Quando comunguei, estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei a Sagrada Hóstia que ia receber de tal maneira que ficou tão gravada na alma, parecendo-me unir a Jesus para nunca mais me separar dele. Parece que me prendeu o coração!
A alegria que sentia era inexplicável. A todos dava a boa nova. A encarregada da minha educação levava-me a comungar diariamente.

Sobre as particularidades da Alexandrina face à Eucaristia, ver-se-á mais tarde.
A Primeira Comunhão pode ter ocorrido no dia 7 de Maio de 1911, Domingo do Bom Pastor. Ao menos, foi nesse dia que se fizeram as Primeiras Comunhões do ano seguinte, de acordo com este soneto saído n’O Poveiro, o semanário do Prior da Póvoa de Varzim, em 25 de Abril de 1912:

A Primeira Comunhão

(No Domingo de Bom Pastor)

Duas a duas, em passo compassado,
Fervorosas, elevam sua oração
As crianças que o Cordeiro Imaculado
Pela primeira vez hoje receber vão.

Sisudas e graves, o olhar extasiado
Para o Céu, onde cantam com devoção
Os Anjos que, cheios de amor dedicado,
A Deus mil graças e louvores dão,

Ajoelham, serenas, à sagrada mesa
Aqueles verdadeiros símbolos da pureza
Para receberem o cândido Jesus…

Que elas vêem, rodeado de Querubins
E de ternos e formosos Serafins,
Fulgente e belo, irradiando Luz!...

Foz, 1912

J. B. de Ovídio Machado



A Póvoa possuía e possui três igrejas marianas, a Matriz, a Senhora das Dores e a Lapa. A Alexandrina, que frequentou a Matriz com regularidade, mostra uma ligação vincada à Senhora das Dores, à Capela da Mãe Dolorosa. Anuncia-se aqui já a sua paixão pela “Mãezinha” e mesmo a sua atracção pelo Calvário, que não será só o nome do lugar da sua residência, mas quase a sua vivência de cada hora.
Nesta capela há nichos com imagens ilustrativas das Sete Dores de Nossa Senhora, que a menina deve ter contemplado com atenção.
Ouçamos a Alexandrina:

Quando ia a passeio com a patroa para o campo, acompanhada com outras meninas, fugia do convívio delas e ia apanhar flores, que desfolhava para fazer tapetes na igreja de Nossa Senhora das Dores. Era em Maio e toda me comprazia em ver o altar da Mãezinha adornado de rosas e cravos e de respirar o perfume dessas flores. Algumas vezes, oferecia à Mãezinha muitas flores, que minha mãe propositadamente me levava.

Veja-se agora um pouco do que ela ditou no dia 9 de Maio de 1947 e onde recebe o título de “Alexandrina das Dores”:

Esta manhã não podia respirar, não podia viver, estava tomada de terror.
Sentia os olhos colados pelo sangue que brotava do grande capacete de penetrantes espinhos que me cingiam a cabeça.
Assim segui as escuras e estreitas ruas do Calvário. ...
Oh, como foi dolorosa a viagem!
Quanto me custou chegar ao Calvário![1]
...
Veio Jesus; deu luz a toda a minha alma e disse-me:
- Minha filha, minha filha, minha Alexandrina, Alexandrina das dores:
Deixa-me que te dê mais este título de Minha esposa: Alexandrina das Dores!
Tem coragem!

O mar

Embora possamos voltar a falar da importância do mar na obra da Beata Alexandrina, vou ler agora dois fragmentos dos Sentimentos da Alma cheios de imagens marinhas e tempestade:

Mas, mais ainda, a minha dor tem olhos que choram lágrimas de sangue e choram continuamente na maior das amarguras; tem pés, tem mãos para ser crucificados, tem cabeça para ser coroada de espinhos até penetrar os ouvidos, invadindo a dor todo o corpo.
Jesus, estou num sobressalto, não sei o que pressente a minha dor.
Ai, que horror, tudo é tempestade, ameaças: ouço zunir os ventos, os ecos dos trovões terríveis, ameaças de destruição.
Tudo fugiu espavorido e eu sozinha no meio do mar, sem barco, sem leme e sem luz, prestes a afundar-me para sempre no abismo do mar.
Horror! Horror!
A tempestade rasga as nuvens, o Céu abre-se e revolta-se contra a terra.
Meu Deus, meu Jesus, que me espera ainda? Em Vossos santíssimos braços me entrego. (27/7/44)

Ontem de tarde, vi o Horto; vi-o em duas partes: numa, tudo era podridão, ruína e morte, trovões, tempestades e a ira do Senhor sobre ela; na outra, dor de toda a qualidade, dor sem fim.
Levou-me para a última parte o amor: mergulhada ali naquela dor, transformou-se o meu coração num mar de sangue, que dava corrente para todas as nascentes; era a água de todas as fontes, era a vida de todas as vidas.
Veio a primeira parte e mergulhou-se neste mar de sangue, e aí a escondeu o amor de Jesus. Como eu o sentia e via Ele incendiar-se! Como Ele amava, enquanto recebia dor, dor sem fim.
(29/8/47)

Esta linguagem também confirma a importância da passagem da Alexandrina pela Póvoa.


[1] Está a falar da vivência da Paixão; embora só íntima, não era menos dolorosa do que quando a revivia visivelmente.

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