O meu tema da vez passada foi a pequena
Alexandrina em Gresufes; hoje é a mesma pequena Alexandrina, mas na Póvoa de
Varzim, nos anos de 1911-1912. Contudo a sua passagem em criança pela Póvoa
vai-me servir para duas conversas.
Hoje evitarei falar da República;
deixarei isso para a próxima vez.
A Alexandrina ditou para a sua
Autobiografia:
Em Janeiro de
1911, fui com minha irmã Deolinda para a Póvoa do Varzim, para frequentarmos a
escola.
Não quero
pensar quanto sofri com a separação da minha família. Chorei muito e durante
muito tempo.
Distraíam-me,
acariciavam-me, faziam-me todas as vontades e, depois de algum tempo,
resignei-me.
Ela foi com a irmã, mas a irmã já
frequentava a escola desde há um ou dois anos.
De acordo com o P.e Humberto Pasquale, “as
duas irmãs foram colocadas em casa do carpinteiro Pedro Teixeira Novo, na rua
da Junqueira”. A mulher do carpinteiro tinha o nome popular de Maria Mataca e possuía
uma lojinha de comes e bebes próxima da Senhora das Dores.
Que relação haveria entre Maria
Mataca e D. Ana? A mãe da Alexandrina fornecer-lhe-ia produtos agrícolas?
De novo o P.e Humberto: “Frequentaram a escola “Mónica Cardia” e
foi sua professora a Sr.a D. Emília Rosa de Freitas Álvares, que habitava na
rua do Almirante Reis”.
Mónica Cardia foi uma mulher abastada e piedosa
do século XVII, que deixou um grande legado para a realização anual da
Procissão do Senhor dos Passos.
A professora aparece numa fotografia
escolar de 1905.
Em termos de casario, a Rua da Junqueira
não era muito diferente do que é hoje, como o documentam fotografias antigas.
Mas ainda haveria lá uma ou outra casa de gente muito humilde, como a de Pedro
Teixeira Novo.
A Alexandrina já tinha estado na Rua da
Junqueira… antes de nascer: foi lá que a Ana da Costa anunciou ao António
Xavier que estava grávida e que ficou ciente que ele a trocava por outra.
O
ensino primário em Balasar
D. Ana da Costa foi muito arrojada ao
enviar as filhas para a escola na Póvoa: ela não era para menos.
Como é que uma mãe solteira tomou uma
decisão destas, que as casadas e os casados não tomavam? Foi uma opção
inspirada. Dizia ela que podia ser útil
às filhas… E foi muito!
Em Balasar já havia escola para meninos
desde há quarenta anos; o ensino primário para meninas só começou em tempos da
Ditadura Nacional, em 1931.
O ensino primário para meninas na Póvoa começou
também tarde. Num documento de 1848 esclarece-se que para meninas não havia lá escola,
que elas aprendiam a ler com as “mestras de fazer meia e costura”…
O que a Alexandrina aprendeu na Póvoa
A Póvoa representou muito para a
Alexandrina. Foi aí que ela aprendeu uns rudimentos de leitura e de escrita;
que pôde conhecer um pouco da vida urbana – ter a experiência doutras formas de
vida, comercial ou piscatória e de lazer, que não a da sua terra rural – e
conhecer também o mar, que tem larga presença nos seus escritos; que passou a
maior parte do tempo que não passou na sua aldeia.
Foi aí que ela comungou pela primeira
vez, que pôde apreciar uma liturgia certamente mais rica, grandes festas
religiosas, que frequentou a Capela da Senhora das Dores, etc.
Também aprendeu aí o que era uma
religião perseguida, mas isso vê-lo-emos na próxima vez.
Morar na Rua da Junqueira era
estratégico, ideal para conhecer a vida urbana. A escola ficava frente à actual
estação do metro, que então era a do comboio.
Ela aprendeu muito mais do que a escola
lhe ensinou.
Traquinices
Voltemos a ouvir a Alexandrina:
Continuei a
ser muito traquinas: agarrava-me aos americanos, deixava-me ir um pouco e,
depois, atirava-me ao chão e caía; atravessava a rua, quando eles iam a passar,
sendo preciso o condutor deles acusar-me à patroa.
A linha do americano vinha do Passeio
Alegre (junto ao mar e ao Café Chinês), pela Junqueira e Praça do Almada, e
dirigia-se para Vila do Conde. Passava portanto frente à escola.
O americano era uma carruagem que se
deslocava sobre carris, puxada por muares. No final d’Os Maias (1888), de Eça, fala-se também do americano, em Lisboa.
Outra citação:
Muitas vezes
fugia de casa e ia apanhar sargaço para a praia, metendo-me ao mar, como fazem
as pescadeiras; trazia-o para casa e dava-o à patroa, que o vendia depois aos
lavradores. Com isto afligia a patroa, pois fazia isto às escondidas, embora
rapidamente.
Temos aqui a mesma menina activa,
irrequieta, ao parece pouco dada ao estudo.
Como
era então a vila da Póvoa?
A Póvoa era uma vila pequena, que
começava ali nos arredores da Matriz, descia pela Praça do Almada até ao mar e
se estendia ainda um pouco para sul e para norte. Já havia a avenida Mouzinho
de Albuquerque, mas, para norte dela, só devia haver casas junto ao mar. Tribunal
e Liceu ainda tinham que esperar quase 50 anos, a Basílica tinha só a
capela-mor e as obras estavam paradas, a própria Capela do Desterro ficava num
descampado, como a Basílica. Ainda me recordo duma casa de lavoura com o seu
espigueiro frente ao Liceu e de campos frente ao Tribunal.
Eclesiasticamente a Póvoa era uma só
paróquia.
A primeira biografia que se
publicou sobre a Alexandrina apresenta-a como “uma vítima da Eucaristia”. De
facto a Eucaristia tem um lugar único na sua vida; daí que os seus biógrafos
dêem merecida atenção a esta informação:
Foi na Póvoa
de Varzim que eu fiz a minha Primeira Comunhão, com sete anos de idade. Foi o
Sr. Padre Álvaro Matos quem me perguntou a doutrina, confessou e me deu, pela
primeira vez, a Sagrada Comunhão. Como prémio, recebi um lindo terço e uma
estampazinha.
Como será que ela se recorda dos
pormenores relativos ao Sr. Padre Álvaro Matos, que nós não recordamos do tempo
da nossa Primeira Comunhão? Por uma razão simples, ele tinha raízes
balasarenses e teve haveres na freguesia.
Quando
comunguei, estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei a Sagrada Hóstia que
ia receber de tal maneira que ficou tão gravada na alma, parecendo-me unir a Jesus para nunca mais me
separar dele. Parece que me
prendeu o coração!
A alegria que
sentia era inexplicável. A todos dava a boa nova. A encarregada da minha
educação levava-me a comungar diariamente.
Sobre as particularidades da
Alexandrina face à Eucaristia, ver-se-á mais tarde.
A Primeira Comunhão pode ter
ocorrido no dia 7 de Maio de 1911, Domingo do Bom Pastor. Ao menos, foi nesse
dia que se fizeram as Primeiras Comunhões do ano seguinte, de acordo com este
soneto saído n’O Poveiro, o semanário do Prior da Póvoa de Varzim, em 25
de Abril de 1912:
A Primeira
Comunhão
(No Domingo
de Bom Pastor)
Duas a duas,
em passo compassado,
Fervorosas,
elevam sua oração
As crianças
que o Cordeiro Imaculado
Pela primeira
vez hoje receber vão.
Sisudas e
graves, o olhar extasiado
Para o Céu,
onde cantam com devoção
Os Anjos que,
cheios de amor dedicado,
A Deus mil
graças e louvores dão,
Ajoelham,
serenas, à sagrada mesa
Aqueles
verdadeiros símbolos da pureza
Para receberem
o cândido Jesus…
Que elas vêem,
rodeado de Querubins
E de ternos e
formosos Serafins,
Fulgente e
belo, irradiando Luz!...
Foz, 1912
J. B. de
Ovídio Machado
A Póvoa possuía e possui três igrejas
marianas, a Matriz, a Senhora das Dores e a Lapa. A Alexandrina, que frequentou
a Matriz com regularidade, mostra uma ligação vincada à Senhora das Dores, à
Capela da Mãe Dolorosa. Anuncia-se aqui já a sua paixão pela “Mãezinha” e mesmo
a sua atracção pelo Calvário, que não será só o nome do lugar da sua
residência, mas quase a sua vivência de cada hora.
Nesta capela há nichos com imagens
ilustrativas das Sete Dores de Nossa Senhora, que a menina deve ter contemplado
com atenção.
Ouçamos a Alexandrina:
Quando ia a
passeio com a patroa para o campo, acompanhada com outras meninas, fugia do
convívio delas e ia apanhar flores, que desfolhava para fazer tapetes na igreja
de Nossa Senhora das Dores. Era em Maio e toda me comprazia em ver o altar da
Mãezinha adornado de rosas e cravos e de respirar o perfume dessas flores.
Algumas vezes, oferecia à Mãezinha muitas flores, que minha mãe
propositadamente me levava.
Veja-se agora um pouco do que ela ditou
no dia 9 de Maio de 1947 e onde recebe o título de “Alexandrina das Dores”:
Esta manhã não podia respirar, não podia viver, estava tomada de
terror.
Sentia os olhos colados pelo sangue que brotava do grande capacete de
penetrantes espinhos que me cingiam a cabeça.
Assim segui as escuras e estreitas ruas do Calvário. ...
Oh, como foi dolorosa a viagem!
Quanto me custou chegar ao Calvário![1]
...
Veio Jesus; deu luz a toda a minha alma e disse-me:
- Minha filha, minha filha, minha Alexandrina, Alexandrina das dores:
Deixa-me que te dê mais este título de Minha esposa: Alexandrina das Dores!
Tem coragem!
O mar
Embora possamos voltar a falar da
importância do mar na obra da Beata Alexandrina, vou ler agora dois fragmentos dos
Sentimentos da Alma cheios de imagens marinhas e tempestade:
Mas,
mais ainda, a minha dor tem olhos que choram lágrimas de sangue e choram
continuamente na maior das amarguras; tem pés, tem mãos para ser crucificados,
tem cabeça para ser coroada de espinhos até penetrar os ouvidos, invadindo a
dor todo o corpo.
Jesus,
estou num sobressalto, não sei o que pressente a minha dor.
Ai,
que horror, tudo é tempestade, ameaças: ouço zunir os ventos, os ecos dos
trovões terríveis, ameaças de destruição.
Tudo
fugiu espavorido e eu sozinha no meio do mar, sem barco, sem leme e sem luz,
prestes a afundar-me para sempre no abismo do mar.
Horror!
Horror!
A
tempestade rasga as nuvens, o Céu abre-se e revolta-se contra a terra.
Meu
Deus, meu Jesus, que me espera ainda? Em Vossos santíssimos braços me entrego.
(27/7/44)
Ontem de
tarde, vi o Horto; vi-o em duas partes: numa, tudo era podridão, ruína e morte,
trovões, tempestades e a ira do Senhor sobre ela; na outra, dor de toda a
qualidade, dor sem fim.
Levou-me para
a última parte o amor: mergulhada ali naquela dor, transformou-se o meu coração
num mar de sangue, que dava corrente para todas as nascentes; era a água de
todas as fontes, era a vida de todas as vidas.
Veio a
primeira parte e mergulhou-se neste mar de sangue, e aí a escondeu o amor de
Jesus. Como eu o sentia e via Ele incendiar-se! Como Ele amava, enquanto
recebia dor, dor sem fim.
(29/8/47)
[1] Está
a falar da vivência da Paixão; embora só íntima, não era menos dolorosa do que
quando a revivia visivelmente.
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