Recentemente uma devota da Beata Alexandrina
fez-nos uma pergunta sobre mística. O que ela queria era entender melhor a
Beata. Como deve ser questão que diz respeito a muitas pessoas, colocamos aqui
parte do prefácio do P.e Humberto Pasquale ao Cristo Gesù in Alexandrina, que traduzimos. Cremos que responde à pergunta,
embora seja um texto pouco acessível ao leitor comum.
A
mística na Igreja
A actualidade da Alexandrina é a sua
vida mística. A elevação a “doutores” da Igreja das grandes místicas S.
Catarina de Sena e Teresa de Ávila por parte de Paulo VI não é um apelo ao
homem de hoje para aspirar a esta meta?
A mística não passou de moda; a mística
não é coisa para “pessoas para cima de quarenta nos” como nos afirmava, com uma
veia de mordacidade, um jovem sacerdote; a mística não é um fóssil, uma
inutilidade.
Na nossa época vivem no escondimento
inumeráveis almas místicas.
Precisamos do Magistério da Igreja para
saber em que acreditar e precisamos dos teólogos para iluminar a nossa mente,
mas serão sempre os místicos, enamorados de Jesus Cristo, que mais
profundamente saberão penetrar no mistério cristão e revelar-nos, graças a uma
sua experiência pessoal, a nossa vocação cristã de identificação com Ele;
revelar-nos “a insondável riqueza de Cristo e fazer ressaltar, aos olhares de
todos, qual seja o providencial desígnio do mistério, escondido desde os séculos
em Deus, criador de todas as coisas, a fim de que possamos compreender a
caridade de Cristo que transcende todo o conhecimento” (Ef 3,10).
“Felizmente muitos jovens e adultos que
criticam e reflectem – assim escreve Igino Giordani – parecem acolher a
exortação de Paulo VI, na Populorum
Progressio, a 'criticar e a eliminar os falsos bens que trariam consigo um
abaixamento do ideal humano'. Além disso, parecem, de vário modo, concordar
sobre o facto que “se deve aspirar a um humanismo integral”. Nas suas buscas
estão-se a abrir à visão do Santo Padre: 'Não há humanismo verdadeiro se não
aberto para o Absoluto, no reconhecimento de uma vocação, que oferece a ideia
verdadeira da vida humana. Longe de ser a norma última dos valores, o homem não
se realiza a si mesmo senão transcendendo-se'”.
Por isso não “os matusaléns” mas os
jovens apontam para a realização da vida que Cristo veio propor e dar aos seus
seguidores.
Não serão certamente os improvisados “carismáticos”,
sempre sentados na cátedra, a encher o mundo de palavras que fazem brilhar a
palavra e a acção daquele Único que tem verdadeiramente o direito de falar e de
agir, não obstante as suas elucubrações e protestos, sinais evidentes de uma fé
muito humana que pretenderia passar a filtro até as coisas maiores e mais
sublimes do Senhor.
Talvez desde há séculos, os escritos de
João da Cruz, de Catarina de Sena, de Ângela de Foligno, de Teresa de Ávila não
tenham atraído o interesse de tanta gente, fora dos claustros, como hoje.
Que
é então esta mística?
A vida mística é a misteriosa vida da
graça de Cristo nas almas fiéis que, morrendo para si, com Ele vivem escondias
em Deus (Col 3,3).
Isto é, “é a vida íntima que
experimentam as almas justas, animadas e possuídas pelo Espírito de Jesus
Cristo, recebendo dele sempre mais e sentindo, não raro de modo claro, os seus
divinos influxos – gozosos e dolorosos – pelos quais crescem e progridem, em união
e conformidade com Ele que é a sua Cabeça, até serem nele transformadas” (Gal
4,19; 2Cor 3,18).
Esta vida pode ser vivida de maneira inconsciente,
como a criança vive a vida racional ou humana.
Vivem-na assim os principiantes e em
geral os ascetas que caminham para a perfeição pelas “vias ordinárias” meditando
laboriosamente os mistérios divinos, exercitando a mortificação das paixões e a
prática das virtudes e da piedade.
Mas pode ser vivida mesmo de modo consciente, com uma certa
experiência íntima dos misteriosos toques e influxos divinos, e da real
presença vivificadora do Espírito Santo.
Assim a vivem muitas almas bastante adiantadas, que alcançaram o
perfeito exercício das virtudes; como ainda outras almas privilegiadas, escolhidas,
muito cedo, livremente, por Deus para as fazer atingir rapidamente, como se nos
seus braços, através das “vias extraordinárias” da contemplação infusa.
Aquelas que vivem assim, mais ou menos conscientemente,
da vida divina chamam-se místicas ou contemplativas.
Místicas, pela íntima
experiência que têm dos ocultos mistérios de Deus; contemplativas porque a sua habitual oração costuma ser a
contemplação que Deus mesmo infunde a quem quer, quando e como quer.
A oração dos ascetas é meditação discursiva que, com a graça
ordinária que Deus não nega a ninguém, podem aperfeiçoar até a converterem em
oração de simplicidade ou contemplação em parte infusa e em parte adquirida.
Ela costuma ser acompanhada por certa presença amorosa de Deus, originada por um
influxo do Espírito Consolador para realizar a transição gradual do estado
ascético ao estado místico. Está escrito de facto que “as coisas de Deus ninguém
as conhece senão o mesmo Espírito de Deus (1 Cor 2,11) e “aquele a quem o Filho
quiser revelá-las” (Mt 11,27).
Para alcançar o estado místico é necessário ser-se consolidado na virtude, vencendo-se
a si mesmo e o conformando sempre mais a própria vontade com a vontade de Deus.
Só assim a alma começa a sentir e a notar certos desejos, impulsos ou instintos
de todo novos e verdadeiramente divinos, não provenientes dela própria, que a impelem
a um género de vida desconhecido e de perfeição muito superior.
Exercitando-se verdadeiramente na
virtude, a alma entra naquela maturação do “homem perfeito” pela qual começará
a ver diante de si a luz e a discrição do Espírito de Cristo, como ensina o
apóstolo (Ef 5,14).
Submetida a prudência da carne – que é
morte – à do Espírito que é “vida e paz”, começará a viver como “espiritual”, a
mover-se sob os influxos do divino Consolidador.
Vendo-se então movida pelo Espírito de
Cristo, reconhece ser filha de Deus porque aquele Espírito de adopção que a move
lhe dá disso testemunho e a impele a chamar “Pai” a Deus omnipotente (Rom
8,6.16).
Havido este impulso, gera nela o dom da
piedade: chama a Deus com este amoroso nome sem advertir que é o seu mesmo
Espírito de amor a movê-la.
Passa assim da simples união de conformidade
em que ela agia à união transformante em que se tem Deus como único director e
motor ordinário da própria vida (S. Teresa, Mansão
V, 2; VII, 3).
É aqui que a alma compreende não só que
opera com a virtude de Cristo, mas que o próprio Cristo com que está configurada
(sendo morta e ressuscitada com Ele e do qual recebeu a impressão do selo vivo)
é Aquele que opera e vive nela e com ela. Assim pode repetir, em toda a verdade,
“vivo, mas não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim”. De facto o seu viver é Cristo, ele cujo Espírito a
vivifica em tudo porque reina no seu coração como padrão absoluto (S. João da
Cruz, estrofe 3,5; 12,2; 23,1; 36,5).
Vida
mística meta do cristão
Do exposto ressalta a importância para a
alma de cuidar do crescimento de virtude em virtude para chegar à união com Deus
e até à transformação deificante. Todos os Padres ensinam que este é o ponto capital da vida cristã: chegar a
assemelhar-se a Deus como um filho a seu Pai: “sede perfeitos como é perfeito o
vosso Pai dos Céus” (Mt 5,48).
O convite é dirigido aos filhos do reino
os quais, por isto mesmo, são já de Deus porque “se alguém não renasce pelo
baptismo na água e no Espírito Santo, não pode entrar no seu reino”.
Mas o próprio Verbo encarnado “a quantos
O recebem dá o poder de se tornarem filhos de Deus, renascendo dele” pela graça
santificante (Jo 1,12-13; 3,5).
Esta graça é uma perfeição substancial,
uma segunda natureza que nos faz novas criaturas na medida em que nos
transforma e diviniza.
Somos filhos de Deus, proprie et formaliter, não tanto por um
dom criado quanto pela inabitação do divino Espírito que vivifica e move as
nossas almas.
Este título de filhos de Deus não é um
nome vão, nem uma simples hipérbole… Indica uma real dignidade, sobrenatural,
essencial a todos os justos e é fruto de redenção e dom de salvação. Ao
recebê-la, com a graça santificante, por adopção, tornamo-nos em certo modo
para Deus o que o seu Filho é por essência.
Sem nos identificarmos ou confundirmos com
Ele, isto é, sem suprimir a nossa natureza, Deus associa-nos à sua, faz-nos
participantes do seu Espírito, da sua luz com a fé, do seu amor com a caridade,
das suas operações em virtude da sua graça. Põe na nossa alma um novo princípio
de acção, o germe de uma vida superior,
sobrenatural, divina, destinada a crescer
e desenvolver-se no tempo para se mostrar plenamente na eternidade, onde participaremos
da sua glória e do reino (Manuel Biblique,
vol. IV, p. 216, n. 587). Eis a raça nova, a estirpe divina de que fala S.
Pedro: um homem divinizado, incorporado com o Verbo feito homem, animado pelo
mesmo Espírito Santo.
S. Agostinho ensina: “Se Deus se humilhou até se fazer homem, foi
para elevar os homens e fazer deles deuses” (Serm. 166); “deifica-os com a sua graça; porque
justificando-os deifica-os, fazendo-os filhos de Deus e por isso deuses” S.
Agostinho, In Ps, 49,2).
O P.e Ramière escreve: “Parece chegado o
tempo em que o grande dogma da incorporação dos cristãos com Cristo terá no ensino
aos fiéis a mesma importância que lhe foi dada na doutrina apostólica. Chegou o
tempo em que não se considerará como acessório o ponto em que S. Paulo fundava
todo o seu ensino; em que se compreenderá que esta união apresentada pelo Salvador
com a imagens dos ramos unidos à videira não é uma metáfora, mas uma realidade;
que no baptismo nos tornamos realmente participantes da vida de Cristo; que recebemos
não em figura mas realmente o divino Espírito, princípio desta vida, e que sem
nos despojar da nossa personalidade humana, nos tornamos membros de um corpo
divino adquirindo, por isso mesmo, forças divinas” (Les Espérances de l´Église,
p. III, cap. 4).
P.e Humberto Pasquale, prefácio de Cristo
Gesù in Alexandrina, páginas 6-11.
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