sexta-feira, 11 de maio de 2012

S. PEDRO DE RATES E A SUA FONTE NO CASAL

Um mártir em Balasar?

Desde muito antes da Beata Alexandrina e da Santa Cruz, os balasarenes acreditaram que a sua terra fora sobrenaturalmente beneficiada: S. Pedro de Rates, um santo mártir da era apostólica, teria deixado aí uma milagrosa marca da sua passagem. Um grande santo, que era o padroeiro da milenária Arquidiocese de Braga. A Vila de Rates poderia gloriar-se de possuir o seu túmulo, mas Balasar possuía o testemunho palpável dum milagre seu.
Só que…

O mundo da lenda

Quando uma lenda passa por ser verdade, deve-se rejeitar. Mas não é a mesma coisa se sabe bem que ela é lenda.
Quem não ouviu falar já da Lenda do Galo de Barcelos? É lenda, mas proporciona grande proveito aos barcelenses...
De Santa Clara de Vila do Conde, conhecem-se ao menos duas belas lendas: a da Abadessa Berengária, sobre a qual Joaquim Pacheco Neves escreveu uma original peça dramática, e a da Menina do Merendeiro.
Do Mosteiro de Vilar de Frades, há a famosa Lenda do Monge e o Passarinho.
É como lenda que se o conta a origem da Capela da Senhora das Neves, ao lado de Balasar.
Há lendas de âmbito local, mas há muitas de âmbito nacional, como a do rimance Nau Catrineta, por exemplo, a da Batalha de Ourique, que Camões tomou como verdade n’Os Lusíadas, a lenda sebastianista, etc., etc.
Na Galiza é importantíssima a lenda sobre S. Tiago, em Compostela.
O mundo da lenda é um mundo onde a fantasia refaz a realidade.

A lenda de S. Pedro de Rates

Conta-se que S. Pedro de Rates foi convertido ao Cristianismo pelo Apóstolo S. Tiago aquando da sua peregrinação pela Hispânia, no século I. Durante essa viagem, cumprindo a missão de difundir a mensagem de Cristo, morto e ressuscitado havia pouco tempo, foi deixando sementes que germinaram e fortaleceram as raízes da Igreja, num império hostil à nova fé. S. Pedro de Rates seria um dos sete varões ordenados pelo Apóstolo, em Santiago de Compostela, e nomeado Bispo de Braga.
Na lenda, o episódio que fez dele um mártir teve origem num milagre: solicitado para curar de doença fatal a filha de um poderoso pagão, S. Pedro de Rates conseguiu-lhe tal dádiva. Reconhecida, a jovem converteu-se ao Cristianismo, o que causou a ira do pai e consequente vingança. Avisado, o santo refugiou-se em Rates, mas foi aí encontrado e morto. Ficou sepultado sob as ruínas da pequena capela onde tudo aconteceu, que foi destruída.
Séculos mais tarde, do alto do monte onde se refugiara, o eremita S. Félix de Laundos vislumbrava uma luz na escuridão. Guiado pela curiosidade e pela convicção de um chamamento divino, dirigiu-se ao local, procedeu à remoção das pedras e encontrou a razão do clarão: o corpo de S. Pedro de Rates.

Como entra a Fonte do Casal na lenda

Cerca do ano 1700, o P.e Carvalho da Costa explicou como a Fonte do Casal entrava na lenda de S. Pedro de Rates:

Na aldeia do Casal está a fonte em que São Pedro de Rates estava de joelhos, bebendo, quando os tiranos vinham atrás dele, de Braga, para o matarem, e foi Deus servido de que o não vissem, estando patente à vista. Dizem que duas covinhas que tem são de seus santos joelhos.
Vêm a esta fonte muitos enfermos de maleitas e, bebendo dela, voltam livres do achaque.

A serem verdade tão manifesto milagre do santo e as subsequentes curas, justificava-se a grande veneração de que essa nascente gozou.
As Memórias Paroquiais dão notícia da fonte nestes termos:

Bebem os moradores duma fonte a que dão o nome de S. Pedro de Rates: há aqui uma pedra com uma pegada estampada, a qual dizem ser do Santo de que a fonte tomou o nome; e, tirando a pedra em certa ocasião, dizem secara de todo e não lançara mais água senão quando se lhe tornou a pôr. Tem o povo grande fé com esta água e dizem que bebendo-a tira as maleitas, de que há repetidas experiências. (1736)
Há nesta freguesia, no lugar do Casal, uma celebrada fonte, chamada de S. Pedro, cuja água é milagrosa para os doentes de sezões e terçãs, como se experimenta bebendo-a com fé e devoção ao mesmo Apóstolo (…). (1758)

Está-se no campo da pura lenda, mas, lenda por lenda, a versão do P.e Carvalho da Costa era mais maravilhosa e completa.
Em 1736, o pároco, o P.e António da Silva e Sousa, fala apenas do milagre da pedra que se tira e se volta a colocar e que condiciona o fluxo da água e até das curas, mas adossa tudo ao povo, embora falando de “repetidas experiências”. S. Pedro de Rates não é taxativamente identificado com o Apóstolo homónimo, mas identifica-o em 1758 (ao menos assim parece); nesta data, a água continua com o seu poder curativo.
Se tudo isto fosse verdade, seria uma extraordinária verdade[1].

Devoção a S. Pedro de Rates em Balasar

Houve devoção a S. Pedro de Rates em Balasar: testemunham-na o P.e Carvalho da Costa e o autor das memórias paroquiais. O primeiro fala até com bastante clareza num peregrinar dirigido à fonte.
Mas, ao lado da intercessão que visava a vida terrena, também se lhe pedia a intercessão para depois da morte: no séc. XVIII, dão disso testemunho os assentos de óbito, no séc. XIX, os testamentos.
Em 11 de Abril de 1745, Custódia, de Gestrins, deixou que se celebrassem por sua alma “oito missas a S. Pedro de Rates, ditas em Braga, no altar privilegiado”; em 30 de Março de 1758, outra senhora estipulou que se “dissessem por sua alma cinco missas no altar privilegiado de S. Pedro de Rates em Braga”; Maria, solteira, de Guardinhos, falecida em 4 de Agosto de 1761, deixou “uma missa rezada a S. Pedro de Rates”; em 1762, uma tal Margarida Gonçalves, natural de Rio Mau, mas residente em Escariz, falecida a 21 de Julho, deixa também uma missa a “S. Pedro de Rates, dita no seu altar, em Braga”.
Haveria certamente mais casos do mesmo século. Mas Manuel Nunes não deixou nenhuma missa com esta intenção, do mesmo modo procedendo um padre balasarense de nome Valentim Rodrigues da Costa.
Nos testamentos do séc. XIX, são frequentes as missas em honra de S. Pedro de Rates, mas muitas vezes é uma só, como aconteceu com Custódio José da Costa:

E logo que eu faleça se dirá uma missa rezada no altar de São Pedro de Rates.

A urgência atribuída a esta missa deve-se a que S. Pedro de Rates era identificado com S. Pedro Apóstolo, o porteiro do Paraíso.
O Cirurgião da Bicha não deixou nenhuma.
Neste século parece ter chegado a existir na freguesia um altar privilegiado do santo, naturalmente com imagem, mas nas décadas finais a lenda deve ter caído em descrédito - provavelmente algum pároco a terá desacreditado - e então a devoção a São Pedro de Rates apagou-se. Ao menos desapareceu dos testamentos. De facto, desde há muito que na diocese era manifesta, ao mais alto nível, a recusa das "patranhas e falsidades" que alimentavam lendas como a deste santo.
Convém também lembrar aqui que havia balasarenses que pagavam rendas a Rates. Aliás a ligação de Balasar a Rates era antiga e devia ser diversificada, até porque a sua igreja devia causar grande admiração pela sua relativa riqueza artística.

Perspectiva crítica

Em 20 de Outubro de 1985, S. Pedro de Rates foi substituído por S. Martinho de Dume como padroeiro da Arquidiocese de Braga. A sua lenda não resistiu à crítica histórica. Mas parece-nos que não se respondeu satisfatoriamente à questão: como é que tal lenda se gerou em Rates? Porquê em Rates? Se não há fumo sem fogo, qual foi o fogo que aí produziu tal fumo?
Como é que este santo lendário pôde ser alçado a padroeiro da diocese se não havia mesmo nada que garantisse o seu carácter histórico?
Mas os estudiosos, que saibamos, não encontraram qualquer notícia do santo nas muitas esculturas dos capitéis e arcos da igreja nem vestígios do seu túmulo.
A tentativa de associar S. Pedro de Rates ao Bispo D. Pedro, o restaurador da Diocese de Braga no séc. XI, falhou[2].
A Fonte de S. Pedro, em Balasar, aponta para um episódio secundário da vida deste problemático santo.
Cavidades em pedras com desenhos vagamente semelhantes a partes do corpo humano[3] impressionaram as mentes populares, gerando lendas. Curioso é que estas sofreram por vezes adaptações com as mudanças de pensamento religioso. No caso da Fonte de S. Pedro de Rates, também é possível que tenha havido adaptação de algo anterior, o que de modo nenhuma a desvalorizaria, bem ao contrário.
O culto a São Pedro de Rates teve pouca expressão na diocese: ele foi venerado em Rates, na Sé de Braga, em Balasar e numa capela em Vila Nova de Cerveira.
No quinto volume da Etnografia Portuguesa[4], a monumental obra de José Leite de Vasconcelos, a Fonte de S. Pedro vem mencionada duas vezes entre as “fontes santas”; na primeira ocorrência, é chamada “Fonte de Balasar”, na segunda, “Fonte de S. Pedro, na Quinta da Piedade”. Uma nota a esta segunda ocorrência envia para duas referências bibliográficas, uma delas em alemão[5].
Balasar deve redescobrir e valorizar esta lenda, e isso implica restaurar a Fonte de S. Pedro.


Imagens de cima para baixo:


Imagem de S. Pedro de Rates, o antigo padroeiro da Arquidiocese de Braga, que se venera na Igreja da Vila de Rates.
Esta imagem que nos mostraram na Casa do Carvalho pode bem ter sido venerada como representando S. Pedro de Rates.
Em 1745, Custódia, solteira, de Gestrins, deixa “oito missas a São Pedro de Rates, ditas em Braga no altar privilegiado”.
Fragmento da primeira página d'O Notícias da Póvoa de Varzim, de 15 de Maio de 1985, a anunciar a substituição S. Pedro de Rates por S. Martinho de Dume no lugar de padroeiro da Arquidiocese de Braga.


[1] A España Sagrada, de Fr. Henrique Florez, Madrid, 1759, tomo XV, páginas 96 e seguintes (reeditada em fac-símile em Lisboa, em 2004), que é um texto bastante crítico, também afirma a historicidade de S. Pedro de Rates.
[2] COSTA, Avelino de Jesus da – O Bispo D. Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga, 2.ª ed., Braga, 1997, vol. I, páginas 502 a 511.
[3] Note-se que para o P.e Carvalho da Costa as marcas da Fonte de S. Pedro eram covinhas que representavam os joelhos de S. Pedro, já para o pároco P.e António da Silva e Sousa tratava-se duma pegada estampada na pedra. Coisas bastante diferentes.
[4] Páginas 132 e 134.
[5] 

Sem comentários:

Enviar um comentário