Desde muito
antes da Beata Alexandrina e da Santa Cruz, os balasarenes acreditaram que a
sua terra fora sobrenaturalmente beneficiada: S. Pedro de Rates, um santo
mártir da era apostólica, teria deixado aí uma milagrosa marca da sua passagem.
Um grande santo, que era o padroeiro da milenária Arquidiocese de Braga. A Vila
de Rates poderia gloriar-se de possuir o seu túmulo, mas Balasar possuía o
testemunho palpável dum milagre seu.
O mundo da lenda
Quando uma lenda passa por ser verdade, deve-se
rejeitar. Mas não é a mesma coisa se sabe bem que ela é lenda.
Quem não ouviu falar já da Lenda do Galo
de Barcelos? É lenda, mas proporciona grande proveito aos barcelenses...
De Santa Clara de Vila do Conde,
conhecem-se ao menos duas belas lendas: a da Abadessa Berengária, sobre a qual
Joaquim Pacheco Neves escreveu uma original peça dramática, e a da Menina do
Merendeiro.
Do Mosteiro de Vilar de Frades, há a
famosa Lenda do Monge e o Passarinho.
É como lenda que se o conta a origem da
Capela da Senhora das Neves, ao lado de Balasar.
Há lendas de âmbito local, mas há muitas
de âmbito nacional, como a do rimance Nau
Catrineta, por exemplo, a da Batalha de Ourique, que Camões tomou como
verdade n’Os Lusíadas, a lenda
sebastianista, etc., etc.
Na Galiza é importantíssima a lenda
sobre S. Tiago, em Compostela.
O mundo da lenda é um mundo onde a
fantasia refaz a realidade.
A
lenda de S. Pedro de Rates
Conta-se que S. Pedro de Rates foi
convertido ao Cristianismo pelo Apóstolo S. Tiago aquando da sua peregrinação
pela Hispânia, no século I. Durante essa viagem, cumprindo a missão de difundir
a mensagem de Cristo, morto e ressuscitado havia pouco tempo, foi deixando
sementes que germinaram e fortaleceram as raízes da Igreja, num império hostil
à nova fé. S. Pedro de Rates seria um dos sete varões ordenados pelo Apóstolo,
em Santiago de Compostela, e nomeado Bispo de Braga.
Na lenda, o episódio que fez dele um
mártir teve origem num milagre: solicitado para curar de doença fatal a filha
de um poderoso pagão, S. Pedro de Rates conseguiu-lhe tal dádiva. Reconhecida,
a jovem converteu-se ao Cristianismo, o que causou a ira do pai e consequente vingança.
Avisado, o santo refugiou-se em Rates, mas foi aí encontrado e morto. Ficou
sepultado sob as ruínas da pequena capela onde tudo aconteceu, que foi
destruída.
Séculos mais tarde, do alto do monte
onde se refugiara, o eremita S. Félix de Laundos vislumbrava uma luz na
escuridão. Guiado pela curiosidade e pela convicção de um chamamento divino,
dirigiu-se ao local, procedeu à remoção das pedras e encontrou a razão do clarão:
o corpo de S. Pedro de Rates.
Como entra a
Fonte do Casal na lenda
Cerca
do ano 1700, o P.e Carvalho da Costa explicou como a Fonte do Casal entrava na
lenda de S. Pedro de Rates:
Na aldeia do Casal está a fonte em que São Pedro de Rates estava de joelhos, bebendo, quando os tiranos
vinham atrás dele, de Braga, para o matarem, e foi Deus
servido de que o não vissem, estando patente à vista. Dizem que duas covinhas
que tem são de seus santos joelhos.
Vêm a esta fonte muitos enfermos de maleitas
e, bebendo dela, voltam livres do achaque.
A serem verdade tão manifesto milagre do
santo e as subsequentes curas, justificava-se a grande veneração de que essa
nascente gozou.
As Memórias Paroquiais dão notícia da
fonte nestes termos:
Bebem os moradores duma fonte a que dão
o nome de S. Pedro de Rates: há aqui uma pedra com uma
pegada estampada, a qual dizem ser do Santo de que a fonte tomou o nome; e,
tirando a pedra em certa ocasião, dizem secara de todo e não lançara mais água
senão quando se lhe tornou a pôr. Tem o povo grande fé com esta água e dizem
que bebendo-a tira as maleitas, de que há repetidas experiências. (1736)
Há nesta freguesia, no lugar do Casal, uma celebrada fonte, chamada de
S. Pedro, cuja água é milagrosa para os doentes de sezões e terçãs, como se
experimenta bebendo-a com fé e devoção ao mesmo Apóstolo (…). (1758)
Está-se no campo da pura lenda, mas,
lenda por lenda, a versão do P.e Carvalho da Costa era mais maravilhosa e completa.
Em 1736, o pároco, o P.e António da
Silva e Sousa, fala apenas do milagre da pedra que se tira e se volta a colocar
e que condiciona o fluxo da água e até das curas, mas adossa tudo ao povo,
embora falando de “repetidas experiências”. S. Pedro de Rates não é taxativamente identificado com o
Apóstolo homónimo, mas identifica-o em 1758 (ao menos assim parece); nesta
data, a água continua com o seu poder curativo.
Se tudo isto fosse verdade, seria uma
extraordinária verdade[1].
Devoção a S.
Pedro de Rates em Balasar
Houve devoção a S. Pedro de Rates em
Balasar: testemunham-na o P.e Carvalho da Costa e o autor das memórias
paroquiais. O primeiro fala até com bastante clareza num peregrinar dirigido à
fonte.
Mas, ao lado da intercessão que visava a
vida terrena, também se lhe pedia a intercessão para depois da morte: no séc.
XVIII, dão disso testemunho os assentos de óbito, no séc. XIX, os testamentos.
Haveria certamente mais casos do mesmo
século. Mas Manuel Nunes não deixou nenhuma missa com esta intenção, do mesmo
modo procedendo um padre balasarense de nome Valentim Rodrigues da Costa.
Nos testamentos do séc. XIX, são frequentes
as missas em honra de S. Pedro de Rates, mas muitas vezes é uma só, como
aconteceu com Custódio José da Costa:
E logo que eu
faleça se dirá uma missa rezada no altar de São Pedro de Rates.
A urgência atribuída a esta missa
deve-se a que S. Pedro de Rates era identificado com S. Pedro Apóstolo, o
porteiro do Paraíso.
O Cirurgião da Bicha não deixou nenhuma.
Neste século parece ter chegado a existir na freguesia um altar privilegiado do santo, naturalmente com imagem, mas nas décadas finais a lenda deve ter caído em descrédito - provavelmente algum pároco a terá desacreditado - e então a devoção a São Pedro de Rates apagou-se. Ao menos desapareceu dos testamentos. De facto, desde há muito que na diocese era manifesta, ao mais alto nível, a recusa das "patranhas e falsidades" que alimentavam lendas como a deste santo.
Neste século parece ter chegado a existir na freguesia um altar privilegiado do santo, naturalmente com imagem, mas nas décadas finais a lenda deve ter caído em descrédito - provavelmente algum pároco a terá desacreditado - e então a devoção a São Pedro de Rates apagou-se. Ao menos desapareceu dos testamentos. De facto, desde há muito que na diocese era manifesta, ao mais alto nível, a recusa das "patranhas e falsidades" que alimentavam lendas como a deste santo.
Convém também lembrar aqui que havia
balasarenses que pagavam rendas a Rates. Aliás a ligação de Balasar a Rates era
antiga e devia ser diversificada, até porque a sua igreja devia causar grande
admiração pela sua relativa riqueza artística.
Perspectiva
crítica
Em 20 de
Outubro de 1985, S. Pedro de Rates foi substituído por S. Martinho de Dume como
padroeiro da Arquidiocese de Braga. A sua lenda não resistiu à crítica
histórica. Mas parece-nos que não se respondeu
satisfatoriamente à questão: como é que tal lenda se gerou em Rates? Porquê em
Rates? Se não há fumo sem fogo, qual foi o fogo que aí produziu tal fumo?
Como é que este santo lendário pôde ser
alçado a padroeiro da diocese se não havia mesmo nada que garantisse o seu
carácter histórico?
Mas os estudiosos, que saibamos, não
encontraram qualquer notícia do santo nas muitas esculturas dos capitéis e
arcos da igreja nem vestígios do seu túmulo.
A tentativa de associar S. Pedro de
Rates ao Bispo D. Pedro, o restaurador da Diocese de
Braga no séc. XI, falhou[2].
A Fonte de S. Pedro, em Balasar, aponta
para um episódio secundário da vida deste problemático santo.
Cavidades em pedras com desenhos
vagamente semelhantes a partes do corpo humano[3]
impressionaram as mentes populares, gerando lendas. Curioso é que estas
sofreram por vezes adaptações com as mudanças de pensamento religioso. No caso
da Fonte de S. Pedro de Rates, também é possível que tenha havido adaptação
de algo anterior, o que de modo nenhuma a desvalorizaria, bem ao contrário.
O culto a São Pedro de Rates teve pouca expressão na diocese: ele foi venerado em Rates, na Sé de Braga, em Balasar e numa capela em Vila Nova de Cerveira.
O culto a São Pedro de Rates teve pouca expressão na diocese: ele foi venerado em Rates, na Sé de Braga, em Balasar e numa capela em Vila Nova de Cerveira.
No quinto volume da Etnografia Portuguesa[4],
a monumental obra de José Leite de Vasconcelos, a Fonte de S. Pedro vem mencionada duas vezes entre as “fontes
santas”; na primeira ocorrência, é chamada “Fonte de Balasar”, na segunda,
“Fonte de S. Pedro, na Quinta da Piedade”. Uma nota a esta segunda ocorrência
envia para duas referências bibliográficas, uma delas em alemão[5].
Balasar deve redescobrir e valorizar esta lenda, e isso implica restaurar a Fonte de S. Pedro.
Balasar deve redescobrir e valorizar esta lenda, e isso implica restaurar a Fonte de S. Pedro.
Imagens de cima para baixo:
Imagem de S. Pedro de Rates, o antigo padroeiro da Arquidiocese de Braga, que se venera na Igreja da Vila de Rates.
Esta imagem que nos
mostraram na Casa do Carvalho pode bem ter sido venerada como representando S.
Pedro de Rates.
Em 1745, Custódia, solteira,
de Gestrins, deixa “oito missas a São Pedro de Rates, ditas em Braga no altar
privilegiado”.
Fragmento da primeira página
d'O Notícias da Póvoa de Varzim, de
15 de Maio de 1985, a anunciar a substituição S. Pedro de Rates por S. Martinho
de Dume no lugar de padroeiro da Arquidiocese de Braga.
[1]
A España Sagrada, de Fr. Henrique
Florez, Madrid, 1759, tomo XV, páginas 96 e seguintes (reeditada em fac-símile
em Lisboa, em 2004), que é um texto bastante crítico, também afirma a
historicidade de S. Pedro de Rates.
[3]
Note-se que para o P.e Carvalho da Costa as marcas da Fonte de S. Pedro eram
covinhas que representavam os joelhos de S. Pedro, já para o pároco P.e António
da Silva e Sousa tratava-se duma pegada estampada na pedra. Coisas bastante
diferentes.
[4] Páginas
132 e 134.
Sem comentários:
Enviar um comentário