Leopoldino Mateus
Junto ao adro da igreja paroquial de Balasar existe uma capela dedicada à Santa Cruz. Esta capela, levantada há mais de um século, em memória de um acontecimento extraordinário, singular, dado em 1832, foi em tempo muito frequentada pelo povo crente, especialmente pela classe piscatória da Póvoa, que deixou gravadas algumas «marcas» na porta da mesma.
Esse facto extraordinário da aparição de uma cruz na terra é desenvolvidamente narrado no processo em que se contém a «Carta de Sentença Cível de Património da Capela da Santa Cruz de Jesus Cristo colocada na freguesia de Santa Eulália de Balasar», dada pelo Doutor António Pires de Azevedo Loureiro, Desembargador Provisor e, por ausência do Governador e Vigário Capitular, sede vacante, encarregado interinamente do governo temporal e espiritual do Arcebispado de Braga, a pedido e requerimento de Custódio José da Costa e outros devotos, cuja petição era do teor seguinte:
Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor
Diz Custódio José da Costa e outros mais devotos da freguesia de Santa Eulália de Balasar do termo de Barcelos deste Arcebispado Primaz que são devotos da Santa Cruz de Jesus Cristo que, para avivar a fé amortecida no coração de alguns cristãos, se dignou aparecer nesta mesma freguesia; fizeram contrair [sic] uma espécie de oratório para veneração daquele milagre, precedendo a licença junta; acontece porém ser muita a influência de devotos que ali concorrem agradecidos aos milagres que a misericórdia divina se digna obrar por intercessão daquela maravilhosa aparição; seria de muito serviço de Deus construir ali uma capela com altar onde se pudesse oferecer o sacrifício incruento do Nosso Salvador para satisfação das Missas que os mesmos devotos ofertam; e por isso pede a Vossa Excelência Reverendíssima haja por bem conceder-lhe a licença pedida, e receberá mercê.
A esta petição, dirigida ao Vigário Capitular, deu o Desembargador-Promotor o seguinte parecer, datado de 5 de Julho de 1834:
Antes de deferir a pretendida licença, convém que o Reverendo Pároco de Gondifelos ou outro vizinho informe sobre a necessidade da capela que se pretende edificar e a quantidade das esmolas que se juntam e se com elas se poderá no futuro constituir um fundo para a sua conservação, ouvindo por escrito o Reverendo Pároco próprio, para se saber se com ele se prejudicarão os seus direitos e servirá de embaraço para o povo deixar de concorrer à Igreja Paroquial.
Em face do parecer, o Vigário Capitular proferiu esta portaria, datada de 22 de Julho de 1834:
Autuada na Câmara; passe ordem de informe ao Reverendo Pároco em cujo distrito se pretende formar oratório ou construir capela, assim como aos Reverendos Párocos circunvizinhos com a resposta do Reverendo Desembargador-Promotor.
Junto à mencionada petição se via e mostrava uma representação do Pároco de Balasar ao Vigário Capitular que então servia, datada de 6 de Agosto de 1832, cujo teor, de verbo ad verbum, era o seguinte:
Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor
Dou parte a Vossa Excelência de um caso raro acontecido nesta freguesia de Santa Eulália de Balasar.
No dia de Corpo de Deus próximo pretérito, indo o povo da missa de manhã em um caminho que passa no monte Calvário, divisaram uma cruz descrita na terra: a terra que demonstrava esta cruz era de cor mais branca que a outra: e parecia que, tendo caído orvalho em toda a mais terra, naquele sítio que demonstrava a forma da cruz não tinha caído orvalho algum.
Mandei eu varrer todo o pó e terra solta que estava naquele sítio; e continuou a aparecer como antes no mesmo sítio a forma da cruz. Mandei depois lançar água com abundância tanto na cruz como na mais terra em volta; e então a terra que demonstrava a forma da cruz apareceu de uma cor preta, que até ao presente tem conservado.
A haste desta cruz tem quinze palmos de comprido e a travessa oito; nos dias turvos divisa-se com clareza a forma da cruz em qualquer hora do dia e nos dias de sol claro vê-se muito bem a forma da cruz de manhã até as nove horas e de tarde quando o Sol declina mais para o ocidente, e no mais espaço do dia não é bem visível.
Divulgada a notícia do aparecimento desta cruz, começou a concorrer o povo a vê-la e venerá-la; adornavam-na com flores e davam-lhe algumas esmolas; e dizem que algumas pessoas por meio dela têm implorado o auxílio de Deus nas suas necessidades e que têm alcançado o efeito desejado, bem como: sararem em poucos dias alguns animais doentes; acharem quase como por milagroso animais que julgavam perdidos ou roubados e até algumas pessoas terem obtido em poucos dias a saúde em algumas enfermidades que há muito padeciam. E uma mulher da freguesia da Apúlia, que tinha um dedo da mão aleijado, efeito de um penando que nela teve, tocando a Cruz com o dito dedo, repentinamente ficou sã, movendo e endireitando o dedo como os outros da mesma mão, cujo facto eu não presenciei, mas o atestam pessoas fidedignas que viram.
Enfim, é tão grande a devoção que o povo tem com a dita cruz que nos domingos e dias santos de guarda concorre povo de muito longe a vê-la e venerá-la, fazem romarias ora de pé ora de joelhos em volta dela e lhe deixam esmolas; e eu nomeei um homem fiel e virtuoso para guardar as esmolas.
Querem agora alguns moradores desta freguesia com o dinheiro das esmolas se faça, no sítio onde está a cruz, como uma espécie de capela cujo tecto, coberto de tabuado, seja firmado em colunas de madeira e em volta cercado de grades também de madeira, para resguardo e decência da mesma cruz e, dentro e defronte da cruz descrita na terra, pôr e levantar outra cruz feita de madeira, bem pintada com a Imagem de Jesus Crucificado pintada, na mesma cruz.
Eu não tenho querido anuir a isto sem dar a Vossa Excelência parte do acontecido e mesmo em fazer a sobredita obra sem licença de Vossa Excelência, persuadido que nem eu nem os moradores da freguesia temos autoridade para dispor a nosso arbítrio do dinheiro das esmolas, que por agora ainda é pouco e não chega para se fazer obra mais dispendiosa e decente à proporção do objecto.
Agora sirva-se Vossa Excelência determinar o que lhe parecer e o que eu devo praticar a este respeito.
Santa Eulália de Balasar, aos seis dias do mês de Agosto de mil oito centos trinta e dois.
De Vossa Excelência súbdito o mais reverente – o Reitor António José de Azevedo
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