Quase no final do nosso livro Até aos Confins do Mundo, colocámos uma
antologia de poesia da Beata Alexandrina.
Os textos correspondem com exactidão ao que ela escreveu, mas dispusemo-los
em verso. Cremos que foi o P.e Humberto o primeiro a tomar a liberdade de dar
aspecto exterior de verso a fragmentos da obra dela; os Signoriles
seguiram o mesmo caminho.
Quem lê esses textos, desde que possua um mínimo de sensibilidade poética, verifica que não é grande o favor que se
faz à autora deles: a poesia estava lá – mas com o verso sente-se melhor.
É curioso notar a riqueza de recursos
retóricos presentes num fragmento como o que se segue.
Começa com uma interpelação ao coração,
uma apóstrofe, num tom de convite delicado mas insistente, que atravessa quase
todo o texto, e termina com outra apóstrofe, agora ao amor.
Depois, há aquela espécie de quiasmo (meu
coração/coração meu) e a anáfora (diz, diz; fala, fala; não, não), a epístrofe
(versos que terminam com a mesma palavra: "Não canses, não deixes de falar do amor! / O amor que é amor, verdadeiro e puro amor"), o paralelismo ("ama de dia e de
noite, ama na dor e na alegria"), com antítese (dia/noite, dor/alegria). A
conclusão é por uma espécie de chave de ouro: “Oh, amor, como tu és grande e
forte!”
Fala, fala, meu coração,diz ao menos nestas linhas quanto desejas amar o teu Jesus!Fala, fala, coração meu,diz ao teu Jesus que só a Ele queres e que só nele queres descansar!Não canses, não deixes de falar do amor!O amor que é amor, verdadeiro e puro amor,não pode calar-se,não pode deixar de manifestar-se,tem que falar e provar que ama sempre:ama de dia e de noite, ama na dor e na alegria, ama na exaltaçãoe, se é amor verdadeiramente puro, ama mais ainda quando é humilhado.Oh, amor, como tu és grande e forte!
As observações estilísticas anteriores
mostram que a inculta Alexandrina, quanto a literatura, era muito mais sábia do
que seria de esperar. A literatura dela não depende de livros: neste sentido, é como a das
cantigas de amigo, por exemplo.
Já agora, repare-se que os primeiros
versos do poema lembram um pouco os primeiros duma estrofe do Aniversário de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos,
onde também se interpela o coração:
Pára, meu coração!Não penses! Deixa o pensar na cabeça!Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!Hoje já não faço anos.Duro.
Somam-se-me dias.Serei velho quando o for.Mais nada.Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
Sem comentários:
Enviar um comentário