quarta-feira, 11 de maio de 2011

Coincidências

O artigo que se segue foi escrito por um balasarense que conheceu a Beata Alexandrina, mas mal, pois faleceu em 1940, o Arcipreste António Gomes Ferreira. Devia falar do P.e Álvaro Matos, o sacerdote, depois pároco da Póvoa de Varzim, que deu a Primeira Comunhão à mesma Alexandrina, mas fala de coisas variadas, como dum P.e Doutor, natural de Balasar, que se fez jesuíta, diz que o P.e Álvaro Matos foi dono duma importante casa nesta freguesia, etc. Assim já se percebe como a Alexandrina fala do P.e Álvaro Matos na Autobiografia: todos o conheciam na sua terra. Muita informação interessante.
Convém abrir a ligação associada ao livro Proscritos.

Era aí por 1885 ou 1886. Eu era estudante de Teologia e estava a passar as minhas férias em Balasar. O Dr. Manuel Campos, ao tempo professor de Filosofia no Seminário de Santarém, veio, como costumava também, passar as suas férias ao seu solar o “Campo”, na mesma freguesia.
Era um madrugador; e todos os dias quando ia para a Igreja da freguesia (ainda era a do Matinho) celebrar a Santa Missa passava pela minha casa, abria a porta e chamava naquela voz de tenor, tão sua: “O estudante está na cama? Cá fora já, para me vir ajudar à Missa…” E eu, às vezes bem arreliado, porque queria mais um bocadinho de cama, lá me mexia e lá ia ajudar o Sr. Doutor à Missa.
Um dia apareceu-me com um rapazinho pela mão, criança muito viva, perna mexida a sair do seu calção irrepreensível, que chamou a minha atenção pela novidade. O Sr. Doutor satisfez logo a minha curiosidade, dizendo-me: “É o Alvarinho, meu sobrinho, filho da minha irmã Rita, que veio passar uns dias connosco”.
Pouco tempo passado, eu ordenei-me sacerdote e segui a vida paroquial e aí me tenho mantido até agora. O Dr. Campos, alma de escol e coração esbraseado de zelo pela salvação das almas, seguia a sua vocação e fez-se religioso na benemérita “Companhia de Jesus”.
O Alvarinho cresceu, fez-se estudante e ordenou-se sacerdote.
Seu tio, o Dr. Campos, antes da sua profissão religiosa e em reconhecimento da muita simpatia que por ele nutria, legou-lhe o seu solar de Balasar, onde ele com a família costumava passar alguns momentos de repouso (algumas palavras ilegíveis).
Os tempos foram passando e um dia rebentou a revolução de 5 de Outubro.
Os revolucionários por toda a aparte perseguiam tudo o quer cheirasse a religião, espatifando tudo, arrastando tudo com uma fúria que dava a ideia que foram muitos manicómios que vomitaram para a rua os seus moradores. Tudo foi perseguido, mas nomeadamente os Jesuítas… Esses foram monteados como feras da pior espécie e passarem os trabalhos e as inclemências que se lêem com lágrimas nos Proscritos.
Por essa ocasião estava eu em minha casa de Balasar a tratar das vindimas e fui muito cedo para a igreja a fim de celebrar a Santa Missa (agora já na actual igreja) e vir presidir aos trabalhos da minha casa.
E quando, depois de fazer a minha preparação, me dirigi à sacristia da Igreja para me paramentar, vi através dos vidros da janela um vulto que espreitava, cauteloso e com manifesto receio de ser descoberto.
Aproximei-me e reconheci o amigo de tantos anos, o Dr. Campos!
Corri logo à porta para lhe dar o abraço de saudade e certificá-lo de que ali, naquele remanso pacífico da nossa aldeia, ainda não tinha chegado a república, que estivesse sossegado.
O Dr. Campos contou os trabalhos que tinha tido para chegar ali da residência de Guimarães, onde se encontrava, sempre perseguido, na sua própria terra e pelos irmãos e patriotas.
Na sua freguesia, que tantas vezes lhe serviu de remanso, de paz e de conforto, ele encontrava sossego.
- Já dei parte ao Álvaro, diz-me ele assustado (algumas palavras ilegíveis), e quero ver se consegue passar-me para Espanha.
Que pena me causou esta cena e como eu desejei naquela ocasião ter uma eloquência de Demóstenes para mover os perseguidores a sentimentos humanos! E o Álvaro lá se mexeu, tomou as suas medidas, tudo preparou e seu caro tio, que nunca na vida fez mal a uma mosca, porque era a bondade em pessoa, lá passou a fronteira, onde, para vergonha nossa, foi encontrar repouso, segurança, estima e apreço que a pátria lhe negou. Vive ainda, para honra da família e da sua ordem, em terras do Brasil a espalhar os benefícios do seu ministério que a pátria não quis aproveitar escorraçando-o… como elemento perigoso.
O sobrinho, o P.e Álvaro Matos – herdeiro da sua casa e das suas virtudes foi, por causa delas, nomeado pároco da Póvoa. O que foi a sua passagem por esta paróquia (da Póvoa de Varzim onde saía o jornal) está gravado ainda bem fresco na consciência de todos os moradores da formosa vila; na Igreja paroquial, na Conferência de S. Vicente de Paulo, no Pão de Santo António, na Beneficente, na Confraria do S. S. Sacramento e sobretudo na revolução moral da sua paróquia.
A sua construção franzina, servida por uma alma de apóstolo e da lúcida compreensão das coisas, gastou-se em poucos anos.
Voou para a eternidade, podendo dizer como S. Paulo ao terminar a sua brilhante carreira de apostolado: fidem servavi, cursum consumavi. 
Amigo íntimo do finado, só me resta pedir-lhe para que no seio de Deus, onde piamente creio que reside, peça ao Pai da Misericórdia que me leve a vê-lo de novo um dia, que não virá longe, para nunca mais me apartar dele.
Arcipreste António Gomes Ferreira, O Liberal, 20/5/1923

Imagem - Casa que foi do P.e Dr. Manuel Campos e depois do P.e Álvaro Matos.

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