pelo abade António Martins de Faria
O P.e António Martins de Faria (Barcelos, 12/9/1837 – Beiriz, Póvoa de Varzim, 14/10/1913) foi pároco de Balasar, mas já o não era quando em 1895 publicou este seu poema, que dedicou aos seus paroquianos de então, da freguesia poveira de Beiriz, e aos seus ex-paroquianos de Balasar, principalmente às crianças.
Anjos do Céu, que louvores
Cantais sem nunca cessar
A Deus, que nessas alturas
Vos deu tão santo lugar,
Por piedade ensinai-me
Hoje também a cantar
Eulália, a virgem, a santa,
O meu anjo tutelar.
Eulália, que toda a vida
Amou a Deus de maneira
Que, se não é entre as santas
Virgens mártires a primeira,
Também não é com certeza
De todas a derradeira,
Como Balasar[1] o comprova,
Tomando-a por padroeira.
Dai pois luz à minha mente,
E à minha frase atavio;
Dai justeza ao meu conceito,
E ao meu génio força e brio;
Fazei enfim que meu canto,
Além de suave e pio,
Seja também a Deus grato,
Que eu desde já principio.
Corria o terceiro século
Dos dias da Redenção,
Quando num jardim de Espanha
Brotou dum lindo botão
Uma rosa, mas tão bela
Que não só toda a atenção
Roubava de quem a via,
Mas também o coração.
É que Eulália, assim chamada
A rosa desse jardim,
Era deveras um anjo,
Ou melhor, um querubim,
Que aos olhos cor da noite,
E lábios cor de carmim,
Juntava um rosto de neve
Do mais nevado jasmim.
O que mais porém prendia
De todos as atenções
Não era tanto a beleza
De suas lindas feições,
Muitas vezes fonte impura
Das mais impuras paixões,
Como a sincera candura
Das suas boas acções.
É que certa, e muito certa,
Do dever, que todos têm,
De amar a Deus sobre tudo,
A Deus, o Supremo Bem,
Eulália em todas as coisas
Procura mais que ninguém
Não só amá-Lo e servi-Lo.
Mas adorá-Lo também.
E, como que ama e adora
A Deus, como deve ser,
Com todas as suas forças,
Tem por sagrado dever
Uma teia de virtudes
Da sua vida tecer,
Eulália tece da sua
A melhor que pode haver.
Apesar de rica e nobre
Como poucas da cidade,
Eulália foge dos fumos
Da soberba e da vaidade;
Até dos mesmos brinquedos,
Tão próprios da sua idade,
Foge Eulália com receio
De ofender a Divindade.
Louvar a Deus com pureza
De lábios e coração;
Pensar de Cristo na vida,
Na morte e sua paixão;
As actas dos santos mártires
Ler com fé e devoção:
Eis, em resumo, de Eulália
Toda a sua ocupação.
Gerado dessa leitura,
Como bem se pode crer,
Eulália sentiu um dia
Dentro do peito nascer
O nobre e santo desejo
De por Deus também morrer,
Desejo que deu a todos
Bem depressa a conhecer.
E tanto que, por guardá-la
Sua mãe, que tal sabia,
Da morte que então se dava
A quem cristão se dizia,
Pega de Eulália e na casa
De campo que possuía
A dez léguas da cidade
Com ela se refugia.
É tal porém o desejo
Que Eulália tem de colher
Do martírio a verde palma
Que, longe de esmorecer
Com isso, sente no peito
Cada vez mais a crescer
Esse desejo, que sede
E febre chega a ser.
Entretanto um grande grito,
Como o rugir do leão,
Retumbou por toda a Espanha
Com brutal, ferino som;
Era a voz da tirania.
A voz da perseguição,
Bradando – guerra de morte
A todo o fiel cristão.
Esta a voz porém que a tantos
Causara susto e pavor,
Ouviu-a também Eulália,
Mas sem medo nem temor;
Como quem só nela ouvia
A voz do seu Criador
Dizendo-lhe: – Chegou-te a hora
De morrer por meu amor.
E tanto que, mal chegada
A noite, vesp’ra do dia,
Em que contava o tirano
Fazer muita apostasia,
Foge Eulália e, caminhando
A noite inteira sem guia,
Chega por fim à cidade
Onde o tirano vivia.
Contar agora os trabalhos
E p’rigos também sem par
Por que passou esta virgem
No seu longo caminhar
Por serras, montes e vales,
Tão duros de transitar,
Não conto, não, que tais p’rigos
Nem posso nem sei contar.
Deixando por isso quanto
Nessa noite se passou,
Apenas direi somente
Que, mal à terra chegou
Do seu berço, logo, logo
Eulália se apresentou
No tribunal do tirano,
A quem dest’arte falou:
- Que frenesim, que delírio
Te impele, Calfurniano,
Aos filhos de Jesus Cristo
A mover tamanho dano?
É ordem que porventura
Te desse Maximiano?
Ou só pretendes com isso
Agradar a Daciano?
Seja porém, que não seja,
O teu feroz proceder
Não é dum homem que sabe
Que um dia tem de morrer,
Nem tão pouco que julgado
Logo por Deus há-de ser,
Mas sim dum vivo demónio
Que quer as almas perder.
Se queres sangue, aqui tens sangue
Nestas veias a girar;
Neles podes da vingança
Tua sede saciar;
Mas não queiras, ó procônsul,
Tantas almas obrigar
A deuses que não são deusas
Honras divinas prestar.
Essa Vénus, esse Apolo,
E muitos outros que tais,
A quem vós, filhos das trevas,
Deuses penates chamais,
Alguns até com figuras
Dos mais feios animais,
Não são deuses, são quimeras,
Pau e pedra e nada mais.
Se tais deuses, entretanto,
Que meu gosto era calcar,
Quereis na vossa cegueira,
Como loucos adorar,
Adorai-os muito embora,
Mas não queirais obrigar
Os cristãos, como já disse,
Vossa loucura imitar.
Com isto que fica dito,
Cego de raiva e rancor,
Qual tigre na densa selva
Ferido do caçador,
Manda o procônsul que Eulália,
Levada pelo lictor,
Sofra das grandes torturas
Desde já todo o rigor.
Esta ordem não era ainda
Bem acabada de dar
E já pronto, e mais que pronto,
O lictor para levar
Eulália aos pesados tratos
Por que tinha de passar,
Quando ao lictor o procônsul
Dá sinal de parar.
- Antes porém de tais penas,
Vós, ó donzela, sofrer,
Diz em seguido o tirano,
Entendo por meu dever
Fazer-te em poucas palavras
Bem a fundo conhecer
As tristes consequências
Do teu louco proceder.
Pensa pois bem e medita
Em tudo que vais passar;
Pensa no ferro e no fogo
Que a vida te vai tirar;
Pensa na mãe sobretudo,
Que ao ver-se sem ti ficar,
Há-de por certo seus dias
Em pouco também findar.
Além disso, nessa idade,
Com riqueza e formosura
Capaz de fazer na terra
Dum rei a grande ventura,
Bem vês que, além de imprudência,
É também grande loucura
Trocar um leito de noiva
Pela fria sepultura.
E não penses, ó donzela,
Que para a morte evitar,
Se peçam de ti serviços
Que tu não podes prestar;
Basta que vás ao turíbulo
Um grão de incenso lançar
Ou ao menos na comida
Dos nossos deuses tocar.
Faze pois como te digo,
Que fácil é de fazer,
E logo terás a dita
De poder de novo ver,
Em vez do negro carrasco,
Que só vê-lo é de temer,
Tua mãe, que terá nisso
Por certo grande prazer.
Com tais palavras Eulália
Tão agitada ficou
Que um escarro de desprezo
Sobre o tirano lançou;
E, com isso não contente,
Um pontapé atirou
Ao ídolo, que em mil pedaços
Por terra logo rolou.
Como um bando de milhafres
Que, ao ver, poisada no chão,
A branca pomba inocente,
Cai sobre ela de roldão
E lhe rasga num instante
Entranhas e coração,
Sobre Eulália assim caíram
Os vis algozes então.
Arrastada ora por uns,
Ora por outros pisada
Escarnecida de muitos
E de todos maltratada,
Eulália de seus vestidos
Até mesmo é desnudada,
E por fim de labaredas
De fogo logo cercada.
No meio porém de tantos
E tamanhos sofrimentos
Causados pela dureza
De tão acerbos tormentos,
Tudo sofre a nossa Santa
Sem queixumes nem lamentos
Como se fora uma torre
Em vão batida dos ventos.
Nisto bate e soa a hora,
Que dá fim ao seu penar;
De seus lábios nacarados
Vê-se sair a voar,
Na figura duma pomba
Da cor da espuma do mar,
A sua alma bela e pura
Que vai ao Céu repousar.
E, tanto que, separada
A alma do corpo seu
Chegou num rápido voo
À sumidade do Céu,
Uma camada de neve
Sobre seu corpo desceu,
Que lhe serviu de mortalha,
De esquife e de mausoléu!
Longe portanto daqui
As carpideiras venais;
Longe daqui os suspiros
E também os tristes ais,
Que é da terra aos elementos
Tão-somente, e ninguém mais,
Que manda Deus desta Santa
Celebrar os funerais.
Em vez pois de sua morte
Com gemidos prantear,
Vamos, cristãos, de virtude
Lindas rosas cultivar
No jardim da nossa vida
Para com elas ornar
De Eulália não só o túmulo
Mas também o seu altar.
Vamos, cristãos, vamos todos,
Que é dever do protegido
Mostrar-se em tudo e por tudo
Ao patrono agradecido;
E não há nada mais belo,
Nem de valor mais subido,
Que à nossa Santa Patrona
Lhe possa ser oferecido.
Seja pois a nossa vida,
Como importa que ela seja,
Uma vida onde a virtude
Bem luminosa se veja;
Uma vida de que possa
Dizer-se até com inveja:
Eis a vida que na terra
Eulália a todos deseja!
Cabia talvez agora
Dos seus milagres falar;
Dos milagres que por ela
Costuma Deus operar;
Mas é tempo, e mais que tempo,
Desta tarefa acabar;
E por isso um só, por junto,
Vos vou hoje aqui contar.
É o caso das três árvores
Que, predispostas em frente
Do altar da nossa Patrona,
Produziam de repente,
No dia da sua festa,
À vista de toda a gente,
Flores que todos os males
Curavam em continente.
E, ao dar agora por findo,
Como dou, o canto meu,
Eu te peço, ó Virgem mártir,
Por tudo que Deus te deu,
Que nos tenhas sempre a todos
Cobertos co manto teu,
Para podermos um dia
Contigo viver no Céu.
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