Colocamos mais uma parte da Paixão de Jesus segundo a Beata Alexandrina. Ela é uma intérprete particularmente habilitada para nos esclarecer sobre o sentido redentor do sofrimento de Cristo.
Entrega-se à morte
1. Cheguei ao Calvário, e desfalecida, sem vida. Levava
no coração um peso imenso.
2. Caí
desfalecida, com o rosto em terra, junto à cova, que já estava aberta para ser
levantada a cruz.
3. Senti como se viesse sobre mim um mundo de feras. Que
raiva e que peso imenso elas descarregaram sobre mim! O coração ficou sempre
esmagado e a bater em grande aflição: parecia expirar a cada momento, e expirar
em trevas e medonha cegueira!
4. Que desespero sinto em mim! E desespero de amor. Tudo
me causa horror: a morte, o abandono, ó meu Deus! De joelhos, levanto os olhos
para o Eterno Pai: dou-Lhe o meu sinal de aceitação a tudo. Entrego-me à morte.
Baixo os olhos, entro em mim e num abraço mais íntimo estreito tudo ao meu
coração.
5. Abraçar aquilo que me causa tédio e nojo!
É despido
6. Tiraram-me
as cordas que me cercavam o pescoço e a cinta: que enormes dores! Elas estavam
enterradas na carne, ensopadas em sangue. Ao serem arrancadas, deixavam-me no
corpo marcas com grandes feridas.
7. Ao
serem-me tirados os vestidos, foram tirados com tanta pressa que chegaram a
rasgar-se. Que dores violentas ao irem com eles pedaços de carne!
8. Os
olhos, com o sangue, não podiam abrir-se, mas a vergonha obrigava-me a
conservá-los mais profundamente fechados: ser despida em público!
9. Só a mesma
graça divina me podia segurar de pé. Quero exprimir-me melhor: não a mim, mas a
Jesus[i].
10. Senti
logo que a Mãezinha queria com o Seu manto cobrir Jesus, revestido em mim.
11. Senti
a vergonha de Jesus: que coisa tão profunda! Não sei o nome que hei-de dar
àquela vergonha.
12. Meu
Deus, que nudez a de Jesus, que pudor sem igual![ii] Com a vergonha todo o Seu santíssimo
corpo estremeceu.
13. O Seu
rosto divino ficou como que incendiado.
14. Foram
tantas as risadas de escárnio, que ecoavam em todo o Calvário!
15. De
longe Jesus levantava para o Céu os Seus olhares; baixava-os de novo, para mais
intimamente sofrer no Seu Coração.
“Trespassaram as minhas mãos e os meus
pés. Cerca-me um bando de malfeitores” (Salmo
21, 17)
16. Estenderam-me
na cruz.
17. Senti
como se fosse eu mesma a deitar-me sobre o madeiro e a estender as mãos e os
pés para ser crucificada. Era um abraço eterno à cruz, a obra da redenção.
18. Os
membros de Jesus estavam nos meus, o Seu
divino Coração no meu estava. Éramos os dois num só corpo a sofrer. Foi
violentíssima a crucifixão. Sentia quase como que se me arrancassem os braços
e pernas fora, tal era a força com que eram puxados para chegarem ao ponto
marcado da cruz.
19. Que
brado tão doloroso de socorro saiu de dentro de mim para o Eterno Pai! Que
olhares tão enternecidos saíam dos meus olhos a fitarem o firmamento, a movê-lo
à compaixão!
20. Vi o
soldado que com grande crueldade dava as marteladas: era destemido, de olhar
cruel e aterrador.
21. Via-o
levantar o martelo ao alto e com toda a força o deixava cair no cravo.
22. Ecoava
dentro em meu peito o som estrondoso do bater dos cravos. Fiquei com os meus
pulsos e pés abertos como se fossem por eles trespassados[iii]:
23. Sentia
que das feridas dos cravos corriam fontes de sangue.
24. Sentia
como se outro cravo, mais duro e doloroso, me cravassem no coração.
As marteladas ecoam ao longe mas não movem os corações
25. Foi
dolorosíssima a abertura das chagas.
26. Senti
como se os cravos me trespassassem todos os nervos.
27. Não
senti só os pés e as mãos rasgadas: todo o peito o foi também. Parecia nada ter
dentro: tudo tinha sido esgotado.
28. A
dor aumentou, e o último momento da vida, se não fosse um milagre, era no mesmo
instante.
29. Ao
ser a cruz voltada para revirar os cravos, foi meu rosto no solo muito ferido
e uma golfada de sangue me veio aos lábios.
30. Que
doloroso foi o retirar dos cravos!
31. Todas as dores das feridas e fúria dos soldados vinham bater no meu
coração; e sentia como se os soldados mo despedaçassem e esmigalhassem a
dentada, tal era a sua raiva.
32. Via
as línguas blasfemadoras que blasfemavam contra mim.
33. O
meu Calvário, o meu Calvário!
34. Foi
Jesus, não fui eu, que assim foi ferido. Mas não sei exprimir-me doutra forma.
35. As
pancadas que apertavam os cravos não eram só para o Calvário: pareciam ecoar no
mundo inteiro.
36. Nem
o som das fortes marteladas sobre os cravos que entoavam ao longe, nem a vista
de tanto padecer, moviam os corações!
“Com Ele crucificaram mais dois, um de cada lado” (Jo. 19, 18)
37. Crucificada,
fui levantada ao alto.
38. Que
grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixar a cruz cair na cova com
tanta força! Pareceu cair num poço.
39. Com o
estremecer da cruz, avivaram-se mais as feridas dos espinhos. E uma chuva de
sangue caía deles, banhava-me o rosto.
40. Todo
o meu corpo restava coberto de espinhos como um ouriço: tudo era dor, tudo era
sangue.
41. Não
cessei mais o meu brado ao Céu: “Socorro,
socorro!”.
42. Fiquei
com Jesus tão presa à Sua dor e agonia, que nada havia que nos separasse.
43. Ao
lado de Jesus foram crucificados os dois ladrões. Eu sentia que os sofrimentos,
as cruzes deles sobrecarregavam sobre mim, sobre a cruz de Jesus que em mim
estava. Sentia sair do Coração divino de Jesus o mesmo amor, as mesmas graças:
um aceitava-as, o outro repelia-as.
“Junto da cruz estavam algumas mulheres:
a Mãe de Jesus... e o discípulo que Ele amava” (Jo. 19, 25-26)
44. Que
corações aflitíssimos rodeavam a cruz!
45. S.
João, as três Marias[iv].
46. Mas o
coração da Mãezinha em nada se parecia com os outros.
47. A
Mãezinha com os olhos fitos em Jesus, com duas fontes de lágrimas a
correrem-lhe pelo seu santíssimo rosto, agonizava com Ele.
48. Jesus
não via com os Seus santíssimos olhos o pranto da querida Mãezinha, porque os
tinha ora fechados, ora levantados ao Céu; mas tudo via e ouvia com os seus
ouvidos e olhares divinos.
49. Estes
iam penetrar toda a dor que no mais íntimo do coração A faziam agonizar.
50. Do alto da cruz
murmurava: “Mãe, minha Mãe, até Tu serves
para meu martírio! A tua dor aumenta-mo: nem ao menos Tu podes aliviar-me!”
51. Ela murmurava: “Tu és meu Filho, eu sou Tua agonia”.
52. A
Mãezinha, quanto sofreu com Jesus! Na cruz, no Calvário, era Ele com Ela um só
coração, uma só alma, uma só dor, um só amor[v].
53. Como
Ele, eu queria enxugar as lágrimas da Mãezinha, consolá-La na sua dor,
fazer-Lhe o que Ela bem depressa ia fazer a Jesus, mas com Ele já morto.
54. A
todos os momentos eu tinha que abraçar-me a mim mesma, para mais em mim
estreitar o Coração da Mãezinha. Quanto mais Ela sofria, mais eu A amava, mais
Ela era mais a minha Mãe.
55. No
cimo da cruz, continuámos os três na mesma dor.
“Repartem entre si as minhas vestes, e
lançam sortes sobre a minha túnica” (Salmo
21, 19)
56. Vi
amontoados os vestidos de Jesus, depois retalhados e leiloados[vi].
57. Senti
como se fosse dado no coração um grande corte com a espada numa capa roxa: não
feriu o pano, mas feriu-me a mim.
58. Feriu-me
a maldade e crueldade com que o fizeram.
59. Que
doloroso foi: os Seus vestidos retalhados e alguns pedaços tão ensopados em
sangue que se colavam à minha alma como se fossem sinapismos! Que dor, como os
senti tão ao vivo! O sangue, as carnes do inocente Jesus nos pedaços do Seus
vestidos!
60. Com o
peso do corpo, as chagas abriam-se cada vez mais;
61. O
sangue caía das mãos e pés com abundância.
62. Oprimida
pela violência da dor produzida pelo rasgar das chagas, senti como se uma veia
junto do coração se rasgasse também: e dele saiu muito sangue que se espalhou
pelo corpo, para romper por todas as feridas.
63. Sentia
todas as chagas, mas mais vivamente a do ombro; e a cinta ainda parecia ser cortada
pelas cordas.
64. Os nervos estremeciam: pareciam encolher-se.
65. A dor
atingia o seu auge.
Que ânsias
de O ver desaparecer custasse o que custasse!
66. Cingiram
à minha cabeça o capacete dos espinhos que me causaram tanta dor e quase me
faziam desnortear. E o coração quase deixava de palpitar. Não eram mãos que no
alto da cruz apertavam esse capacete, mas era o rancor mais que infernal de
tantos corações.
67. Sentia
como se me escarrassem e açoitassem mesmo no alto da cruz! Sentia os açoites
na alma, como se me fossem dados no corpo.
68. Ao
ouvir as maiores injúrias, sentia correr no meu corpo bagadas do suor da morte.
69. Parecia-me
que todo o corpo e alma se rasgavam de dor, à semelhança de pano, fio a fio.
70. Custou-me
tanto a crueldade e ingratidão daqueles que desdenhosos ocupavam o Calvário!
71. Senti que em muitos corações aumentava o ódio, o aborrecimento contra
Jesus — um desejo de O ver desaparecer dos seus olhares venenosos, fosse como
fosse, custasse o que custasse.
72. O inocentíssimo Jesus estava num gemido
contínuo.
A Paixão de Cristo renova-se
continuamente através dos tempos
73. Ondas
de insultos, tormentos e maldades caíam sobre mim.
74. Não sentia ali só os maus-tratos do Calvário, mas sim os de todo o
mundo.
75. Os
meus olhos mergulhados nas trevas nada podiam ver; neles tinham outros olhos
que viam tudo, tudo através dos tempos, todo o sofrimento que até ao fim do
mundo havia de ferir um Coração que
junto ao meu estava.
76. Da cruz fiquei a ver em todo o mundo todos os sofrimentos que, no
decorrer dos tempos, a cada momento, iam renovar a Paixão de Cristo, que de mim
se tinha revestido.
77. Sentia os golpes de toda a humanidade, pessoa por pessoa: uns com toda
a crueldade e maldade, outros forçados e até inconscientes do mal que faziam.
78. Tudo
sentia, tudo me estava presente: o passado, o presente, a ingratidão e maldade
do futuro.
79. Eu
queria[vii] poder chorar as minhas culpas e as de
todo o mundo. Se eu tivesse a dor e o arrependimento da Madalena! Mas não, não
tinha! Só tinha as ânsias de me abraçar à cruz por amor de Jesus.
80. Sentia-me
abraçada à cruz: queria sofrer, queria morrer.
81. O meu calvário morto[viii] tinha lágrimas; estas mergulhavam
nelas a humanidade inteira. Esta morte bradava, e junto a ela havia a dor
infinita e as ânsias infinitas de ao mundo dar a vida.
[i] Sim, Jesus resistiu a tão atrozes tormentos porque
amparado pela Sua Divindade.
[ii] O despimento das vestes
completa o desapego total de Jesus e torna-O completamente disponível para o
sacrifício pedido pelo Pai. A Alexandrina insiste neste pormenor, porque vive,
no seu recato de mulher, o que sente acontecer com Jesus.
[iii] A Alexandrina sofreu os
estigmas místicos (Cfr. Cronologia da vida, pág. 69…)
[iv] “A Mãe, Maria mulher de
Cléofas e Maria de Magdala. (Jo. 19, 25).
[v]
A Senhora das Dores encontra-se lá, com o
coração trespassado pela dor (Lc. 2, 35), qual nova Eva junto do novo Adão que
realiza na árvore da cruz o Seu sacrifício redentor. Tal como a primeira Eva,
junto da árvore do paraíso terreal, cooperou com o primeiro Adão para a ruma
da humanidade, assim Maria, Rainha dos Mártires, repara a desobediência da
primeira Eva e torna-se “causa de salvação para si e para todo o género humano”
(S. Ireneu. III, 22, 4; L. G. 58).
Ela lembra, outrossim, o dever da nossa participação na
Cruz de Cristo para completar o que em nós falta à sua Paixão (Col. 1, 24).
Esta Doutrina foi acentuada pelo Concilio Vaticano II (L. G., 61).
[vi] A túnica não foi rasgada
porque era de uma só peça, sem costuras, e por isso foi tirada à sorte (Jo. 19,
23-24).
[viii] Na medida em que a
agonia de Jesus está ligada ao pensamento da morte, o que causa horror a Jesus
não é a morte entendida como simples acidente biológico mas sim como sinal do
pecado e, portanto da revolta do homem contra Deus e da separação d’Ele.
Durante a Sua Paixão, primeiro no Getsémani, e talvez mais ainda no Calvário,
para expiar as culpas da humanidade, parece que Jesus tenha voluntariamente
experimentado a miséria e a solidão (a morte verdadeira) dos homens separados
de Deus pelos seus pecados. Compreende-se pois, como, por instantes, se tenha
eclipsado em Jesus a consciência da Sua comunhão com o Pai; desta forma ela não
proporcionava mais nenhuma consolação à Sua alma humana (cf. La sapienza della Croce oggi, o. o.,
vol. 1, pág. 77-78). A Alexandrina exprime de maneira lapidar este sentimento
de Cristo e por ela experimentado, dizendo: “O meu calvário morto”.
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