A longa narração Ceia Pascal que se segue é transcrita do livro organizado pelo Pe. Humberto A Paixão de Jesus em Alexandrina Maria da Costa. Paga a pena ler ou reler.
"Ide
preparar-nos o necessário para comermos o cordeiro pascal". (Lc. 22, 8)
1. Ao cair da tarde, a grande Ceia do amor. Amor que grande ingratidão
recebeu.
2. Veio os ânimos e cuidados com que se prepara a Ceia: vejo que vai ser a
Ceia do amor, das maravilhas, como outra jamais seria.
3. Sinto que Jesus vai dando aos seus as suas ordens e, parando de passos
a passos, olha com os seus olhares divinos a Cidade ingrata, o Horto de tanta
amargura, o Calvário que O espera.
“Pôs-se à mesa
e os apóstolos com Ele”
(Lc. 22, 14)
4. Subi com Jesus e com os apóstolos para a grande sala onde foi
realizada a Ceia. Quando subia a escadaria, sentia que Jesus ia faminto por ir
comer com os Seus discípulos aquela Ceia.
5. Mas antes de principiar a cerimónia via a Mãezinha louca de dor,
lacrimosa, cabelos desgrenhados. Jesus fez-se compreender que poucas horas
depois Ela iria, assim neste estado, ao Seu encontro nas ruas da amargura.
6. Foi grande a dor do Seu divino Coração com a visão das
lágrimas da Mãezinha!
7. Vi Jesus sentar-se à mesa com os Seus apóstolos. E ao
sentar-se, falou para si o Seu divino Coração: “Manjar divino: a Ceia do meu amor!” Todo o aposento se iluminou e
todos os apóstolos ficaram embebidos naquele amor que Jesus irradiava pelos
Seus divinos olhos, lábios e todo o Seu ser, porque todo Ele era amor.
8. Jesus
era amor, amor, só amor; amor a enfrentar maldade e ingratidão. Judas, já não
era Judas: já se via nele um verdadeiro demónio. [i]
9. O olhar esgazeado do mau discípulo ficou gravado em
meu coração.
10. Desesperado, com
o demónio nele e o fogo infernal, já não recebeu o amor de Jesus.
“Vede,
a mão daquele que Me vai entregar está comigo à mesa!”
(Lc. 22, 21)
11. Vi
Judas à mesa, mas mais retirado um pouco. Queixo comprido, olhos esgazeados,
cabelos esticados: todo ele já não parecia um homem: só se via nele um
desespero infernal.
12. Foi doloroso e arrepiante o ler no coração de Judas os
maus instintos, a falsidade que tinha para com Jesus e ser por seus olhares
venenosos contemplado! Judas fitava Jesus com maldade e, sem querer fazê-lo,
fazia-o para disfarçar. Jesus fazia-o com doçura e bondade para o convidar a
Si.
13. Ele
oferecia-lhe o Coração e queria abraçá-lo.
14. Que
doces convites a um coração de pedra, a um rochedo que não se move!
15. Dois
quadros tão diferentes: uma traição sem igual e um amor sem igual. Quantos
convites cheios de doçura a essa traição! O traidor resiste, a nada se rende;
não se sente bem ao pé do Cordeirinho vítima inocente.
16. Tinha
dentro em mim, bem gravados na alma, dois olhares: o de Jesus e o de Judas. Que
diferença! O de Jesus, terno e a espalhar amor. O de Judas, esgazeado,
desesperador. Possuía também dois corações, os dos mesmos: o de Jesus, cheio de
bondade e de santos convites; o de Judas, cheio de rancor e ódio.
17. Vem a
traição, a venda do que há de mais belo e inocente, a entrega, a falsa entrega.
18. A amargura da
minha alma não pode subir mais alto.
“Depois deitou água numa bacia e começou
a lavar os pés aos discípulos” (Jo. 13, 5)
19. Vi-O
depois tomar em suas divinas mãos uma bacia grande, redonda; cingir o seu
pescoço com uma toalha e seguir o lava-pés.
20. Senti
que um[ii] a quem causava muita impressão
lavar-lhe os pés, a um olhar e poucas palavras, até já se despia para, se
preciso fosse, lavar-lhe todo o corpo.
21. No
lava-pés, Jesus não só lhos lavava, mas o seu divino Coração baixava tanto que
até lhos queria beijar. Eu sentia que Jesus com o seu espírito lhos beijava.
Que lição para mim! Que humildade a de Jesus!
22. Fui
aprender a ser pequenina. Jesus, o Senhor de tudo, fez-se o mais pequenino no
meio dos apóstolos Ele amava tanto, tanto!
23. Ah, se eu pudesse exprimir aqui todo o amor, toda a bondade e ternura de Jesus, que
bem podia fazer às almas! Mas não sei melhor.
24. Jesus
dava do seu divino Coração para cada um dos seus discípulos o seu divino amor,
em raios luminosos como sol a aparecer no horizonte. Todos os discípulos o
receberam e deixaram-se por ele iluminar. Apenas Judas se fechou e recusou o
Seu brilho e luz.
“Tomai e comei: isto é o meu corpo…
Bebei dele todo. Porque este é o meu sangue...” (Mt. 26, 26-72)
25. Que
noite, que santa noite! A maior de todas as noites. A noite do maior milagre,
do maior amor de Jesus! O seu divino
Coração estava preso àqueles que lhe eram tão queridos. Para poder partir,
tinha que ficar entre eles; para subir ao Céu, tinha que ficar na Terra. [iii]
Assim O obrigava o seu amor divino.
26. O
sofrimento amado, quem te compreenderá?
27. Queria
que todos conhecessem aquele mistério de pão e vinho transformados no Corpo e
Sangue do Senhor! Que milagre prodigioso! Que abismo insondável de amor! Apesar
de se sentir mergulhada nele, não o compreendia para o saber explicar; só o
soube sentir, e só no Céu o compreenderei.
28. Vi o
doce Jesus a abençoar o pão.
29. Queria
saber dizer, poder mostrar, no memento da bênção, os olhares que Jesus levantou
ao Céu.
30. De
olhos fitos no Céu, em chamas de fogo, orou por tanto tempo a seu Eterno Pai.
31. Vi o
seu rosto de tal forma inflamado, que mais parecia ter em Si só a vida do Céu,
do que ser uma semelhança nossa: não perecia homem, mas sim só Deus: amor, só
amor.
32. Que
encanto! O seu santíssimo rosto era se luz, parecia que só fogo o rodeava; com os olhos encantadores fitos no Céu e um
Sorriso doce abençoava o pão, que pouco depois por todos distribuía.
33. Foi
tal a luz, foi tal o amor que a todos embebeu: Jesus, os apóstolos e eu!
34. E
naquele momento de amor e maravilha sem igual, senti que o mundo era outro. Jesus
dava-se a ele em alimento e partia para o Céu, e com ele ficava; aquele amor
estendeu-se por toda a humanidade.
“Quem
come a minha carne e bebe o meu sangue fica em Mim e Eu nele”
(Jo. 6, 56)
35. Que
cena tão tocante, que cena só de amor, só de um Deus! E a Eucaristia, meu Deus,
que maravilha, quando Jesus a instituiu!
36. Nunca
senti tanto ao vivo as ternuras e o amor de Jesus com os seus discípulos. Todos
os discípulos comungaram das mãos de Jesus, abrasados em amor. Hei-de dizer que
Judas comungou também. Ele estava mais afastado: Jesus estendeu a Sua divina
mão para o lado dele com o Manjar celeste.
37. Judas
ficou logo como um condenado do inferno, tal era o seu desespero.
33. Jesus
falava sempre com a mesma doçura e meigos sorrisos.
39. E
os apóstolos, naquela hora mais que nunca, se encheram de Jesus [iv], se
inflamaram de amor e chegaram a compreender tudo quanto Ele lhes dizia.
40. Só na sala da Ceia experimentei, por
alguns momentos, a grandeza do Seu amor, grande como o Céu e a Terra, grande
como a mesma grandeza de Deus.
41. Como
Ele amou; como Ele ama! Os Seus desejos, que vivêssemos d’Ele e para Ele.
42. A
Mãezinha, retirada um pouco, mas presente, compartilhava de tudo isto.
Depois de Judas engolir o bocado… saiu
imediatamente. (Jo. 13, 27-30)
43. Não
sei como eu era o alimento, eu era a Hóstia.
44. O meu
coração era o cálice, era o vinho, era o pão. Todos vinham comer e beber a este cálice. Dali em diante toda aquela cena seria renovada. Mas, oh! Que horror, o que eu vi: tantos Judas a comerem e a beberem indignamente! Que línguas tão
sujas! Mas mais horror ainda: mãos tão indignas a distribuírem este Pão e este
Vinho! mãos indignas, corações cheios de demónios! Que horror, que horror de
morte! Senti tanta dor, que de dor e horror parecia-me rasgar a alma e
despedaçar o coração
45. Senti
também em mim a língua de Judas, língua que ardia de fogo infernal, depois que
comeu o Pão e bebeu o Vinho abençoado por Jesus.
46. Judas,
quase logo, saiu com a saca do dinheiro[v], para O ir vender.
47. Fugiu
desesperado a vomitar fora aquela Ceia celeste que por Jesus lhe tinha sido
dada. E continuou a sua traição.
“Vós sereis meus amigos... tudo quanto
ouvi de meu Pai vo-lo dei a conhecer” (Jo. 15, 14-15)
48. Toda
a assistência ficou em paz e amor.
49. Convívio
de grande intimidade! As conversas são animadoras.
50. Que
conversação de tanta sabedoria e paz!
51. Queria
poder fazer sentir a todos os corações o que é o amor de Jesus para com a alma
que verdadeiramente O ama.
52. Senti
o amor com que João se inclinou ao Seu santíssimo peito e o amor que, naquele
momento, Jesus lhe fez sentir. [vi]
53. Como
se uniram tão docemente o Coração divino de Jesus ao coração do discípulo
amado! Jesus consolava-Se no Seu discípulo e este no seu Mestre. Esta união
suavizou a dor angustiosa de Jesus.
54. Senti
que o doce Amor dava a gozar e sofria Ele amargamente. Naqueles momentos, muito
concentrado, em profundo silêncio, viu todo o Horto e Calvário. E sobre Ele
caiu como fera furiosa toda a humanidade.
[i] “No decorrer da ceia, o diabo meteu na cabeça
de Judas que O entregasse” (Jo. 13, 2).
[ii] O apóstolo Pedro (Jo. 13, 6)
[iii] “Sempre que no altar se celebra o sacrifício
da cruz, no qual ‘Cristo, nossa Páscoa foi imolado’ (I Cor. 5, 7), realiza-se
também a obra da nossa redenção” (LG,3).
[iv] “Deu-lhes um alimento do Céu… Comeram até se
saciarem…” (Salmo 77, 24-29).
[v] Judas tinha sido encarregado por Jesus de ter
a bolsa do grupo apostólico (Jo. 13, 29).
[vi] Paulo VI afirmou que o mistério do Coração de
Jesus é “celebração do Amor de Deus, que reverbera sobre o Coração humano do
Verbo encarando” (AAS, 67). Nas origens deste culto aparecem duas cenas
evangélicas: a de João que reclina a cabeça sobre o peito do Mestre e,
principalmente, a do peito de Jesus rasgado pela lança de um dos soldados. Elas
levaram gradualmente a piedade cristã a considerar a obra redentora como um
mistério de amor. Isto aparece de forma muito eloquente através destas páginas
da Alexandrina.
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