S. Lucas tem no Novo Testamento um lugar bem especial. Autor do terceiro evangelho, redigiu também os Actos dos Apóstolos. E nisso foi único. Ora este segundo livro, que nos mostra a igreja nascente a dar os primeiros passos sob a condução do Espírito Santo, é da maior importância. É por exemplo ele que nos deixa entrever o contexto das comunidades a quem S. Paulo e outros dirigem as suas cartas ou até um pouco ainda do contexto em que surgiu o Apocalipse.
Segundo S. Lucas, no momento do nascimento de Jesus, em Belém, os anjos cantam: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!” Mas isso passa-se num ambiente social preciso, pastoril, onde há um presépio, que é uma manjedoura. Ora os pastores eram gente pouco regular nos actos religiosos das sinagogas e por isso gente malvista. Mas como poderiam ser regulares a esses actos se eles vagueavam pelas terras áridas da Judeia à procura de pastos? Contudo a palavra dos anjos valoriza a boa vontade deles.
Cada evangelista tem traços próprios e uma perspectiva teológica sua. Coisa semelhante acontece, por exemplo, com os papas, com os bispos, com os párocos, etc. Vamos tentar penetrar um pouquinho na de S. Lucas.
Se o presépio nos fala da vinda do Salvador, a cruz fala-nos da conclusão, do remate da sua obra. E como vemos Jesus nesse momento?
Entre dois ladrões ou malfeitores, condenados pela justiça humana.
Apetece dizer: Glória a Deus que se digna estar ao lado dos pecadores! Desde o princípio ao fim da sua passagem entre os homens. Ele não veio para os condenar, mas para os salvar.
Entendo que o caso dito do bom ladrão – como é possível haver um bom ladrão? – é de molde a causar-nos verdadeiro escândalo. A justiça humana condenou-o à morte e umas poucas palavras suas, de boa vontade, patenteiam-lhe as portas do Paraíso. Sem Purgatório.
Então o homem não tinha de compensar as vítimas dos seus roubos, das suas violências?
Que bondade esta injustiça – certamente aparente injustiça – de Deus!
Fica-se com a ideia de que o próprio Deus assume o encargo de reparar os lesados. Mas o ladrão é que vai, “hoje mesmo”, para o Paraíso.
S. Lucas é o evangelista da parábola do Filho Pródigo. E nela há uma situação identicamente escandalosa. O outro filho amuou, e nós, na nossa justiça humana, tendemos a dar-lhe razão. Então ao mal comportado, que malbaratou os haveres “com mulheres de má vida”, passeatas e comezainas, faz-lhe uma grande festa de recepção e para o irmão ordeiro, dedicado, não há nada?
Nos escritos da Beata Alexandrina, Jesus chega a dizer-lhe coisa parecida com isto: Eu tenho vontade de ir de joelhos junto de cada homem e pedir-lhe que Me ame! A Alexandrina também reage e acha exagero. Mas é mais ou menos o que está no Evangelho. Jesus veio à procura do homem e, se ele tem um gesto de aceitação, se ele dá um passo na direcção certa, Jesus quer-lhe dar tudo.
Glória a Deus nas alturas!
Paz na terra aos homens de boa vontade!
Às vezes diz-se que todos os dias do ano deviam ser Natal. Eu entendo que não: há um dia para o Natal, outro para a Páscoa, outro para o Pentecostes, etc. Dizer que todos os dias deviam ser Natal pode significar o esvaziamento do carácter histórico da encarnação da Palavra, do Verbo de Deus. Aproveitar uma data do ano para falar de fraternidade, de amor, num jeito pouco comprometedor, mas sem Jesus, pouco tem de Natal.
No Credo há uma expressão que diz assim: “E padeceu sob Pôncio Pilatos”. A alguém pode parecer que o nome de Pilatos recebe ali uma consagração indevida. Não seria melhor esquecê-lo, um traste fraco como ele foi?
Não: o que esta frase afirma é o carácter histórico da morte e consequentemente da vida de Jesus. Jesus não é uma entidade mítica, duma era brumosa, à margem da aventura concreta do homem. Não, Ele partilhou connosco o nosso tempo, as nossas tentações, as nossas dificuldades de fome, de frio, o nosso sofrimento. E veio dar-lhes um sentido que nós não poderíamos suspeitar.
Paz na terra aos homens de boa vontade! Glória a Deus nas alturas!
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